Há 49 horas que não vejo ninguém cuspir. Ninguém peidar, mijar, rotar ou urinar na praça Pública — para piorar o aroma repulsivo da cidade. Nem eu. Os olhos secos dos homens denunciam-me o infortúnio da pátria. Os que riem, sem dúvidas) fazem apenas uso de um recurso estilístico: ironia. Rir é a forma certa de fingir o caos. Os autocarros passam com a mesma palavra: cheio. Autocarro cheio, país vazio.
País vazio, autocarro cheio. Repito o verbo porque é o que nos caotiza. O preço voou e nada agora me faz conjugar o verbo lutar. Por que lutar, se posso chamar mais uma moeda e sentar-me ao banco do qua- dradinho? — Para conseguir então esta moeda, mais velho? Ouço esses sons ecoarem sobre meus ouvidos. A pessoa insiste que eu responda. Puxo uma folha da memória para corrigir o CARTAZ erro cometido diante do menino que me atormenta. Desta vez, pareço ouvir vozes multiplicadas.
Todos reclamam com tudo e com todos. Ninguém ri, ninguém fala. Todos unificaram o pensamento: sair deste lugar para ir (em)cagar em outras pias. As latrinas aqui há muito que entupiram. Tenho os olhos no relógio. A hora parece parada. A temperatura transpira nossos corpos enquanto esperamos um transporte que nos arranque daqui. À esquerda, há mulheres que corridam.
Não existe a palavra educação nas cabeças dos que fiscalizam nossas mulheres-mães. Na estrada, qualquer fardado deve ser temido. Todo fardado agora é agente regulador de trânsito. E o documento que se pede até meus alunos já conhecem. A poeira estende-se sobre os corpos dos homens e sobre as comidas expostas. A higiene acabou há já cinquenta dias de autonomia.
Pode-se cheirar tudo. Um kandongueiro pára e tem um destino a indicar: nossas casas. A força aqui não tem gênero. Não tem idade. Todos abandonam a vida para se entregarem aos riscos. A gravata é o único utensílio que nos intimida. Os homens engravatados também são pessoas mortas como nós. Pegam o sol, a poeira, e correm atrás das carcaças como se estivessem numa corrida de estafeta. Volto a olhar para o relógio.
O tempo deu um passo, e nós aqui continuamos estátuas. Hoje, faz cinquenta horas — e a cidade continua verde. Os jardins criaram amor com os olhos secos. Alguma coisa no meu bolso vibratoca. Acordo. É mensagem do governo, nosso pai: “Ferver sempre a água.” — Possas !São 50 horas e estou atrasado… Não se educa a cidade hoje.
Coordenador da Só Crónicas & Cronistas