A recente condecoração de antigos dirigentes do Partido Comunista Português (PCP) pelo contributo prestado à luta anticolonial, no âmbito das celebrações dos 50 anos da Independência Nacional, levantou alguma celeuma em certos sectores da sociedade angolana.
Antes de mais, importa sublinhar que as ligações entre comunistas portugueses e nacionalistas angolanos remontam à década de 1950, quando o país vivia sob a vigilância e repressão implacável da PIDE. Razão pela qual consideramos que essa condecoração nos convida a revisitar a memória de um dos maiores expoentes do nacionalismo moderno e do pensamento marxista em Angola, Viriato Francisco Clemente da Cruz, ou simplesmente Viriato da Cruz.
Poeta, político e intelectual cuja trajectória fulgurante continua a intrigar académicos e pode servir de inspiração para várias gerações. Corria o ano de 1955, aos 27 anos, quando, envolvido em acções políticas clandestinas, fundou com Ilídio Machado, Mário António e António Jacinto o Partido Comunista Angolano (PCA).
Uma formação política que, naquele contexto, despertou pouco interesse da juventude luandense, o que levou-os a mudar-lhe o nome para Partido de Luta Unida dos Africanos de Angola (PLUAA), mantendo, porém, o mesmo espírito de resistência e emancipação.
Mas, afinal, quem é o jovem prodígio Viriato da Cruz?
Nascido a 25 de Março de 1928, no Porto Amboim, numa família abastada, Viriato cresceu em ambiente privilegiado. O seu pai, Abel Cruz, era proprietário de manadas de gado, pescarias e fazendas de café. Mas seria em Luanda, para onde viajou aos 20 anos para passar uma temporada com a mãe e a avó, que a sua consciência sobre a libertação nacional e o bem-estar dos angolanos se afirmaria.
A experiência adquirida entre as ruas da Ingombota, o convívio com novas realidades sociais e os ensinamentos recebidos da avó moldaram-lhe uma profunda angolanidade e o espírito crítico que o acompanharia para sempre.
Algo que era alimentado pelo sonho de fazer a formação superior na Metrópole (em Terra de Camões). O testemunho de Edmundo Rocha, seu contemporâneo e com quem privou em diferentes ocasiões, descreve-o como um homem de rara inteligência, curiosidade intelectual e capacidade de trabalho fora do comum. Alguém que dominava os seus companheiros pela qualidade e profundidade do raciocínio.
Viriato da Cruz reunia uma personalidade dominadora e carismática, sociável, amável e de grande eloquência, traços que o tornaram um verdadeiro pólo de atracção intelectual entre os jovens luandenses.
Em 1948, ao lado dos poetas Mário António e António Jacinto, e dos jornalistas Leston Martins e Mário Alcântara Monteiro, lançou o movimento literário “Vamos Descobrir Angola”, que procurava reinterpretar a identidade cultural angolana e promover uma literatura engajada na libertação do homem africano.
Quatro anos após chegar a Luanda, Viriato já possuía uma sólida formação marxista, reflexo de leituras intensas e debates intelectuais que o destacavam dos seus pares. Assim, de forma natural, destacava-se o seu elevado nível cultural e político.
Essa maturidade transparece numa carta de dez páginas, datada de 29 de Novembro de 1952, enviada à poetisa moçambicana Noémia de Sousa, em que expõe uma visão crítica sobre a estrutura social colonial e o papel de uma futura classe capitalista angolana, dando ênfase aos benefícios que esta poderia trazer ao país. A própria Noémia viria a descrevê-lo, conforme consta na obra “Viriato da Cruz: Obra Máxima II”, como um ser, à semelhança de Amílcar Cabral, predestinado: “um daqueles homens em que uma estrela na testa os marca desde o berço para rasgar caminhos em todos os campos.
Um homem magro, de grande craveira intelectual e política, poeta inovador, de fino sentido de humor, apaixonado por uma causa e que não deixava ninguém indiferente”. A veia poética levou-o, em 1954, à Sociedade Cultural de Angola, onde viria a integrar o selectivo corpo de gerência.
Uma associação multirracial fundada em 1942 com a finalidade de promover actividades culturais e científicas e que tinha como canal a revista Cultura. Uma publicação que era produzida por grande parte dos intelectuais luandenses da época. Algum tempo depois, filiou-se à Associação dos Naturais de Angola (ANANGOLA) onde dirigiu, em colaboração com Alcântara Monteiro, o departamento cultural que tinha sob alçada a célebre revista Mensagem.
Anos depois, abandonou também essa organização para integrar a Liga Nacional Africana e mergulhar na militância clandestina com os companheiros, com os quais fundou o Partido Comunista Angolano. Em 1956, aos 27 anos, elaborou aquela que seria a sua obra-prima política: o Manifesto de 1956, considerado o documento fundador do MPLA.
O texto, escrito à mão e redigido em condições de clandestinidade, contou com o contributo de Ilídio Machado, António Jacinto, Matias Miguéis, André Franco de Sousa e Higino Aires de Almeida.
Por essa razão, os seis partilham o “estatuto” de percursores da corrente do nacionalismo marxista que teve origem na Ingombota, em Luanda. Até hoje, estudiosos se interrogam sobre como um jovem de tal idade concebeu um documento de tamanha profundidade teórica, que analisava a realidade colonial e traçava directrizes para uma Angola livre e socialmente justa.
Conforme atesta Edmundo Rocha, na sua obra intitulada “Angola: Contribuição ao Estado do Nacionalismo Moderno Angolano, volume II”, as ideias do Manifesto inspiraram diversos grupos nacionalistas em Luanda, Lisboa e Paris. Porém, de modo descoordenado e restrito às elites urbanas, sendo esse o seu “Calcanhar de Aquiles”, pois a mensagem não chegava a Angola profunda.
O Manifesto e as acções que desenvolvia na clandestinidade o colocaram “na mira” dos operacionais da PIDE. Ao se aperceber disso e suspeitando que poderia ser preso a qualquer instante, Viriato tomou uma das decisões mais difíceis: abandonar a mãe e a avó.
Assim, refugiou-se em Outubro de 1957 na casa de Amílcar Cabral, em Lisboa. Ali, aos 28 anos, procurou articular uma frente de libertação africana independente da oposição antifascista portuguesa, defendendo que a pressão contra o colonialismo devia ser exercida de fora para dentro.
Todavia, por não se sentir seguro em Portugal, emigrou para Paris, onde passou a viver com o apoio de Mário Pinto de Andrade, Marcelino dos Santos e Aquino de Bragança. Mas, ainda assim, viu-se impossibilitado de lá permanecer por muito tempo.
Voltou a emigrar para a Bélgica e, posteriormente, para a Alemanha. Relembrar o autor de poemas imortais como “Mamã Negra”, “Sô Santo” e “Namoro” é revisitar uma das páginas mais luminosas da nossa história literária e política.
Como bem sintetizou Edmundo Rocha, Viriato da Cruz foi “a estrela meteórica que iluminou os céus do nacionalismo angolano”. Um génio que brilhou intensamente, mas cuja luz se apagou cedo demais.
Nota: continua na próxima edição.
Jornalista