Numa altura em que o nome do escolhido para ocupar o cargo de Vice-Presidente da República era conhecido apenas pelo então Presidente da República, José Eduardo dos Santos, Joaquim Manuel Aguiar dos Santos, ou simplesmente Aguiar dos Santos, assinava um dos mais impactantes e surpreendentes artigos do extinto semanário AGORA, com o título: “e se esse homem irrompe pelo Palácio?”
Aproveitando o facto de ele ter sido homenageado no âmbito das celebrações dos 50 anos da Independência Nacional, na categoria “Paz e Desenvolvimento”, decidimos partilhar com os leitores deste jornal alguns dos momentos que tivemos o privilégio de viver com aquele que foi um dos expoentes máximos do jornalismo impresso no período pós-independência.
A sua inclusão na lista de homenageados é também reflexo da iniciativa do Presidente da República, João Lourenço, em reconhecer o contributo de figuras que, com coragem e dedicação, ajudaram a construir o país — e em fazer desta comemoração uma celebração que abrange todos os angolanos.
Sem saudosismo nem nostalgia, o fazemos para honrar a memória de um homem que prestou relevantes serviços à Pátria, contribuindo para a formação de centenas de jovens jornalistas. Aguiar dos Santos deixou bem patente as suas impressões digitais na luta pela liberdade de imprensa e de expressão, bem como na construção do Estado Democrático e de Direito, através de um jornalismo voltado essencialmente ao serviço do cidadão.
Não seria menos importante realçar que a sua trajectória profissional está intimamente ligada à história do Sindicato dos Jornalistas Angolanos (SJA). Pois, fez parte do seleto grupo que, a 28 de Março de 1992, em pleno período de transição do partido único para o multipartidarismo, ousou fundar essa organização sindical.
Entre os pioneiros estavam também Siona Casimiro (já falecido), Avelino Miguel, Reginaldo Silva, Graça Campos, Mário Paiva, William Tonet, Ramiro Aleixo, Victor Aleixo, Sara Fialho, Anastácio de Brito, Adelino Marques de Almeida e Ismael Mateus. Mas é sobre Aguiar dos Santos que pretendemos falar. Profissional de “pena fina”, moldada na Angop, integrou o primeiro grupo de jovens angolanos enviados à então Jugoslávia para se formar no Instituto Superior de Jornalismo de Belgrado.
Ao regressar, voltou a integrar os quadros da Revista Novembro, à época dirigida pelo nacionalista Roberto Victor de Almeida, que mais tarde se tornaria vice-presidente do MPLA. Ansioso por pôr em prática os conhecimentos adquiridos em Belgrado, transferiu-se para a Angop, órgão que considerava “uma verdadeira escola”.
Posteriormente, por decisão própria, deixou o sector público e passou a trabalhar como correspondente de órgãos internacionais como a RFI e a France Press, em Luanda. Integrou também o grupo que criou o Correio da Semana, primeiro jornal privado na Angola independente, onde viria a ser chefe de redacção. Colaborou no Imparcial Fax, dirigido pelo malogrado Ricardo de Melo, onde mantinha uma coluna intitulada “Angola dos Pequeninos”.
Nela, escrevia sob três pseudónimos distintos — Varanda de Castro, Sebastião Desta Vez e Lukeni Vladimir —, recurso que lhe permitia explorar diferentes vozes, estilos e perspectivas sobre o país. Anos depois, em 1996, em companhia dos jornalistas Mário Paiva e Ramiro Aleixo, fundou a primeira cooperativa de jornalistas em Angola – a Globalmedia – Jornalistas Associados, SARL. A este trio de empreendedores, liderado por Aguiar dos Santos, juntar-seiam nomes como Pires Ferreira (falecido), José António Freitas (homenageado postumamente), Fernando Martins, Luísa Rogério, entre outros.
Apesar de deter apenas 25% das ações, Aguiar dos Santos foi escolhido para dirigir a cooperativa e a publicação que ela haveria de criar. Num contexto marcado pela guerra e por forte restrição à liberdade de imprensa, os “10 destemidos” surpreenderam o país ao lançar, a 7 de Janeiro de 1997, o semanário AGORA, com apoio da ADRA — organização dirigida por seu irmão, o engenheiro agrónomo Fernando Pacheco.
O slogan da publicação traduzia bem a paixão deles pela profissão: “AGORA: mais do que um jornal, uma paixão.” Além dos textos informativos, Aguiar revitalizou a coluna Fio do Prumo, transformando-a numa referência do jornalismo opinativo em Angola.
Certo dia, num contexto semelhante ao actual, não se sabe se por furo ou por faro jornalístico, publicou o nome de Manuel Domingos Vicente, então PCA da Sonangol, como potencial candidato à Presidência ou VicePresidência da República.
O artigo, intitulado “E se esse homem irrompe pelo Palácio?”, teve o impacto de uma “bomba”. Na edição seguinte, Aguiar voltou ao tema, revelando a reacção de Manuel Vicente ao ver-se na capa, com o referido título em letras garrafais. A nova manchete foi igualmente certeira: “Não ‘paniques’, Manuel Vicente.”
A sua habilidade com títulos era fruto de um talento natural aliado a muita leitura. Ainda assim, antes de fechar a capa do jornal, fazia questão de ouvir seus colaboradores – um gesto de humildade raro.
Quando fui admitido nos quadros do jornal, sediado na casa n.º 66 da Rua Lourenço Mendes da Conceição, conviviam ali grandes nomes: os mestres Aguiar dos Santos e António Freitas (já falecidos), e jornalistas como Júlio Gomes, António Miguel, Augusto Nunes, Tom Carlos, e mais tarde Ireneu Mujoco, Manuel Lutomatala, Gaspar Micolo, Michel Canhanga, Kim Alves, Francisco Cabila e Ernesto Gouveia (estes dois também já partiram para outra dimensão). De lá já haviam saídos profissionais notáveis que hoje vão prestando o seu contributo ao país em diversos sectores.
A redacção do AGORA era uma autêntica escola, onde as lições de História de Angola, Ciência Política, Ética e Amor à Pátria aconteciam diariamente. Nós, os mais jovens, ouvíamos os veteranos como os “meninos à volta da fogueira”, retratados na emblemática canção “Os Meninos do Huambo”, de Rui Mingas. À noite, no frenesim do fecho da edição, havia uma pausa para o churrasco.
Testemunhando o diálogo entre o director Aguiar, o chefe Freitas e o revisor de serviço (acompanhando de sorrisos), em plena redacção, aprendíamos mais sobre o valor da liberdade e os desafios que o país tinha pela frente para atingir os tão almejados níveis de desenvolvimento humano e crescimento económico.
Certa vez, com seu humor peculiar, Aguiar contou um episódio em que foi convidado pela Presidência da República para a cerimónia de cumprimentos de fim de ano – um acto que designava por “beija a mão”. Ao chegar, surpreendeu os presentes.
Alguns, incrédulos, perguntaram: “Aguiar, você aqui?” E ele, sorrindo, respondia: “Por que não? Também sou angolano. E o Presidente é de todos nós.” Era a sua forma de ensinar, sem discursos, que o respeito pela cidadania está acima das conveniências.
A sua paixão pelo jornalismo coexistia com outra: o futebol. Era fervoroso adepto do Libolo, clube de Calulo, sua terra natal. Em várias ocasiões, afirmou — inclusive na sua coluna Fio do Prumo — que desejava, ao morrer, ser enterrado com jornais no caixão e a urna coberta com as bandeiras de Angola e do Libolo.
Lamentavelmente, Aguiar dos Santos faleceu na madrugada do dia 07 de Setembro de 2012, vítima de doença, sem concretizar o seu sonho de publicar o livro, contendo todas as crónicas que assinou com o pseudónimo de Nasguenfa.
Escritas em modo literário, inspiradas na técnica de escrita de Luandino Vieira e de Boaventura Cardoso, diferente dos textos do Fio do Prumo. O jornalismo angolano ainda sente a ausência dos mestres que partiram — e a sociedade também.
Se Aguiar ainda estivesse entre nós, certamente, com seu estilo inconfundível, ajudar-nos-ia a perceber: “Afinal, quem será o próximo a irromper pelo Palácio da Colina de São José?”.
OBS: Título inspirado num artigo original de Aguiar dos Santos, a quem rendemos homenagem neste texto.
Por: PAULO SÉRGIO
Jornalista