Num sistema económico mundial cada vez mais desigual e injusto, muitos países em desenvolvimento são acusados de contrair empréstimos irresponsáveis, uma vez que o stresse da dívida impede/condiciona tanto o volume de investimento quanto o nível de crescimento da economia.
Porém, importa sinalizar que existem vários mitos relacionados a dívida pública, com destaque para a tentativa de tratar/compreender economicamente o funcionamento dos governos como sendo igual ao das famílias (um governo “responsável” busca superavits, tal como um chefe de família exemplar busca equilibrar o seu orçamento).
No entanto, entendemos ser bastante simplista, infundado e enganoso o estabelecimento da analogia entre o governo e as famílias, uma vez que a mesma ignora o facto de os governos e as famílias serem entidades monetárias distintas. Pois, contrariamente às famílias, a maior parte dos governos nacionais emite a sua própria moeda. E o facto de a moeda ser amplamente utilizada para transações económicas, dá a dívida pública e as obrigações do governo poder de influenciar diretamente os ganhos e a acumulação de riqueza das famílias e empresas.
A analogia padrão também ignora um dos princípios fundamentais da contabilidade (método das partidas dobradas), onde a despesa de uma entidade corresponde exactamente a receita de outra e/ou o débito de uma ao crédito de outra. A título de exemplo, basta olharmos para o facto de que o déficit do governo equivale precisamente ao superávit do sector não governamental (famílias, empresas e o “resto do mundo”).
Portanto, quando o orçamento de um governo está deficitário (o volume de receitas arrecadadas pelo governo situa-se abaixo do volume de despesas por si realizadas e/ou a executar), o que acontece de facto, é a geração de riqueza financeira líquida para o sector não governamental por parte do governo. Desse modo, é legitimo dizer que os déficits governamentais concorrem para o aumento da poupança privada e da oferta de dinheiro na economia. Uma vez que somente o governo tem poder para emitir moeda nacional, as suas despesas não “eliminam” os gastos do sector privado, ao contrário, completam-nos. Como a moeda é dívida emitida pelo Estado, não haveria dinheiro em uma economia se o governo pagasse toda a sua dívida.
Assim sendo, a histeria da mídia em relação a dívida pública é injustificada. Na verdade, faz-se necessário prestar a devida atenção aos impactos macroeconómicos e distributivos dos gastos públicos.
Levantando os seguintes questionamentos: Tal despesa gera(rá) inflação ou impactará negativamente a balança de pagamentos? Quem será beneficiado ou prejudicado? Na mesma senda, um outro mito amplamente disseminado e que teimosamente persiste é a crença de que além de um determinado nível (limite) a dívida pública torna-se necessariamente insustentável ou passa a impactar negativamente o nível/velocidade do crescimento económico, não obstante existirem vários estudos que em diversas circunstâncias desacreditaram os pressupostos dessa tese.
Imitando os critérios da zona euro, assistimos muitos governos de países da África Ocidental estabeleceram metas políticas, incluindo déficits públicos de menos de 3% do Produto Interno Bruto (PIB) e relações dívida pública/PIB de menos de 70%. Descurando por completo de que retirando o facto da relação entre a dívida pública e o PIB indicar, sem dúvida, os níveis relactivos de endividamento, a mesma não possui significativa utilidade analítica. Pois, a dívida pública é um “stock”, ao passo que o PIB ou produção é um “fluxo”.
Para que nos compreendamos melhor, suponhamos que um determinado país que tenha uma renda anual de USD 100 e um stock de dívida pública de zero. Se o governo emitir uma dívida pública avaliada em USD 50 ao longo de 25 anos, com prestações anuais de USD 2, a relação dívida pública/PIB aumentará repentinamente para os 50%.
No entanto, isso não representaria necessariamente um problema, uma vez que muito provavelmente o PIB crescerá devido a ampliação dos investimentos enquanto se amortiza a dívida de USD 50. Registando uma taxa média anual de crescimento económico situada nos 3%, o PIB desse país mais que duplicará no período em causa. Além disso, a dívida pública é sempre sustentável quando emitida e mantida em moeda nacional e o banco central controla as taxas de juros. O Japão é um exemplo clássico disso.
Com um rácio da dívida pública sobre o PIB de 254%, ainda assim muito dificilmente o governo japonês se vê(rá) com dificuldades de honrar os compromissos da sua dívida (insolvente). Contrariamente aos países em desenvolvimento, pois assumem maioritariamente dívida em moeda estrangeira a taxas que não controlam. Em contraste, o Peru teve um default em 2022 com uma relação dívida/PIB de somente 33,9%.
Por: WILSON NEVES
Economista









