A modernização africana é um dos dilemas centrais do nosso tempo, como transformar riqueza potencial em prosperidade efectiva, como converter juventude em força produtiva e como fazer da diversidade cultural um motor de inovação em vez de fragmentação.
África carrega consigo as marcas de uma história de colonização e dependência, mas também uma energia singular para construir alternativas. É neste ponto de viragem que a China, com a sua trajetória peculiar de ascensão, emerge como parceira estratégica para o continente africano.
A filosofia confuciana, por exemplo, sempre concebeu a ordem social como produto da harmonia entre hierarquia e responsabilidade. Confúcio não falava de “modernização”, mas da necessidade de um Estado forte, ético e orientado para o bem-estar colectivo.
Essa ideia, de que a prosperidade é inseparável da estabilidade política e da disciplina social, ressurge, de modo adaptado, no discurso chinês contemporâneo sobre desenvolvimento. Ao contrário do liberalismo ocidental, que coloca o indivíduo no centro, a tradição chinesa privilegia o equilíbrio do corpo social.
É precisamente esta lógica que seduz muitos líderes africanos, ou seja, a crença de que a ordem e a estabilidade são pré-condições para o progresso. Com fundação da República Popular da China de 1949, Mao Zedong reinterpretou essa tradição num quadro marxista, propondo um caminho de modernização que rejeitava tanto o colonialismo ocidental quanto a dependência soviética.
Mao via a revolução como força regeneradora capaz de transformar um país agrário em potência industrial. Essa lição ecoa em África, onde muitos países, após as independências, enfrentam dilemas semelhantes de adaptação de ideias externas a realidades locais.
Foi com Deng Xiaoping, a partir de 1978, que a modernização chinesa ganhou novo fôlego. O “não importa a cor do gato, contanto que cace ratos” traduziu-se num pragmatismo que permitiu retirar mais de 800 milhões da pobreza, atrair investimentos estrangeiros e, ao mesmo tempo, preservar a soberania do Estado.
Esse modelo híbrido tornou-se referência para vários países africanos, que veem na China não apenas uma fonte de financiamento, mas uma prova de que é possível crescer sem se submeter a condicionalidades externas.
O Fórum de Cooperação ChinaÁfrica (FOCAC), criado em 2000, consolidou essa relação. Desde então, Pequim tornou-se o maior parceiro comercial do continente africano e de acordo com dados oficiais, chegaram a 282 mil milhões de dólares em 2022. Estradas como as de Luanda-Bengo (EN100), em Angola, a ferrovia de Addis Abeba-Djibuti, que liga a Etiópia e o Djibuti, a Barragem de Merowe-Sudão, o Porto de Doraleh, no Djibuti, bem como telecomunicações, multiplicaram-se pelo continente. Para Angola, em particular, essa parceria foi decisiva na reconstrução pós-guerra civil, onde hospitais, escolas e infraestruturas energéticas ergueramse através de um modelo de troca petróleo-por-infraestruturas.
Mas a presença chinesa não se resume ao betão. No século XXI, a modernização também é digital. Empresas como Huawei e ZTE expandiram as redes de telecomunicações na Nigéria, Etiópia e África do Sul, ao permitir a conectividade a milhões de cidadãos.
Hoje, mais de 70% das redes 4G africanas utilizam tecnologia chinesa e testes de 5G estão em curso em vários países. A chamada “Rota da Seda Digital” promete ir além, com a questão da inteligência artificial, comércio eletrónico e serviços financeiros móveis, ao permitirem acelerar a inclusão de milhões de africanos. Não obstante a isso, surgem dilemas sobre soberania tecnológica e dependência externa.
No campo político-diplomático, Pequim tem procurado projectar-se como defensora de uma ordem internacional multipolar, assumindo-se cada vez mais como porta-voz do Sul Global.
Essa postura não é apenas retórica, estando fundamentada numa solidariedade histórica. Em 1971, quando a Resolução 2758 da AssembleiaGeral da ONU devolveu à República Popular da China o seu assento, 26 países africanos votaram favoravelmente para este processo. Esse gesto permanece, ainda hoje, como símbolo de reciprocidade, ao reforçar a narrativa chinesa de parceria.
Pequim utiliza esse capital histórico para consolidar a sua presença em África, ao mesmo tempo em que oferece ao continente uma alternativa diplomática frente à hegemonia ocidental, particularmente dos Estados Unidos e da União Europeia. Contudo, a lógica pragmática das relações internacionais impõe cautela. A modernização africana apoiada pela China não está isenta de riscos.
O financiamento chinês, embora fundamental para impulsionar infraestruturas e dinamizar economias, tem criado novos padrões de dependência. Em 2023, pelo menos doze países africanos tinham mais de 20% da sua dívida externa concentrada em empréstimos provenientes de Pequim, segundo dados do China Africa Research Initiative (SAISCARI).
Este cenário levanta questões sobre sustentabilidade fiscal, soberania económica e a margem de autonomia estratégica do continente. Não obstante a isso, a lição de Deng Xiaoping continua, portanto, actual, ou seja, “não importa a cor do gato, contanto que cace ratos”.
Para África, a eficácia da parceria estratégica com a China dependerá menos da origem do modelo e mais da capacidade de transformar o apoio externo em ganhos internos concretos.
O desafio reside em apropriar-se das oportunidades oferecidas, sem se aprisionar a dependências estruturais que comprometam a soberania política e económica. Neste contexto, o futuro da modernização africana dependerá da robustez das instituições nacionais, da prudência na gestão da dívida e da construção de uma visão estratégica de longo prazo.
A Zona de Comércio Livre Continental Africana (AfCFTA) apresenta-se como instrumento central para articular a integração regional com investimentos externos, transformando o peso colectivo do continente em vantagem negocial.
Para Angola, em particular, a renegociação da dívida com a China abre espaço para uma agenda de diversificação económica que privilegie agricultura, indústria transformadora e inovação tecnológica, que poderá proporcionar a dependência do petróleo e reforçar a sua autonomia no cenário geopolítico actual. Em última análise, a modernização africana não será importada nem copiada.
Tal como a China reinterpretou Confúcio, Marx, Mao e Deng para forjar a sua própria via, África também terá de reinterpretar as suas tradições e potencialidades. A experiência chinesa oferece instrumentos, mas o caminho só pode ser definido a partir de uma visão africana, enraizada nas realidades locais e orientada para o futuro.
Se a filosofia confuciana ensinava que a harmonia nasce do equilíbrio entre passado e presente, talvez a modernização africana encontre força nesse mesmo princípio, o de respeitar a sua história, dialogar com parceiros externos e construir, de forma soberana e criativa, o seu próprio horizonte de modernidade.
Por: João Eugénio Quitongo
– Docente Universitário, Investigador e Mestre em Relações Internacionais, na especialidade de Diplomacia.









