Aplausos ensurdecedores. Ovações aduladoras. Exaltações eclesiásticas. Venerações monárquicas.
A ocasião exigia. Era um momento incomum. Tudo preparado ao detalhe.
As pérolas adornadas no espaço, a passarela purpurosa, as vestimentas coloridas dos presentes, a pompa do acto, tudo longe de um funesto acontecimento.
Mas era isso que aconteceria, uma funestidade, a imolação da razão. Ergueuse o machado, que passara noites a fio sob o jugo dos ferreiros, os melhores, aqueles cujas habilidades foram adquiridas nos melhores centros de preparo, lá onde se aprende não só a fazer, mas a ser também. E se tão bem aprenderam a ser, como justificar a sua participação neste acto sanguinário?
O que lhes competia fizeram. O machado estava afiado. Agora, já não há mais volta. Já foi erguido. Entre os ferreiros, há quem tentou travar o movimento curvilíneo do golpe. Foi em vão. Ninguém trava uma tempestade com as mãos, assim como não se impede uma acção com intenções. Portanto, o seu desejo não passou disso mesmo, desejo. O altar estava preparado, em escassos minutos, o acto aconteceria e a razão morreria.
A quem cabia a execução do golpe mortal? Há muito que se discute entre homens e animais que diferença há.
A Biologia apresenta as suas respostas. A Epistemologia também. A Linguística, igualmente, invocando a linguagem como elemento separador entre uns e outros. As religiões são as que mais se esmeram em explicar o porquê e a diferença entre as espécies.
As categorias são claras, duas apenas: racionais e irracionais, ambos criados por Deus, só que, uma é dotada de razão e a outra não, por isso, a supremacia da primeira sobre a segunda.
Ainda vale essa classificação? Facto mesmo é que a racionalidade é invocada como o elemento distintivo que coloca os humanos numa categoria especial, superior e dominante.
Porém, aconteceu o inédito… O acontecimento mudava completamente o paradigma. Desafiava a lucidez da percepção e ultrapassava a limpidez do raciocínio.
Agora não eram somente os humanos, os inumanos também falam, e como falam, falam como discursam, discursam como mentem, uma espécie de razão especial. Entenda-se, os animais “irracionais” começaram a falar. Na verdade, já falavam, conclusões discutidas por humanos baseados em especulações. Sim, já falavam numa outra linguagem.
A transição deu-se porque aprenderam a linguagem humana. E, agora, para simbolizar a igual desigualdade para com os humanos, nada melhor que um acto simbólico, tal como os dos humanos, num areópago semelhante às majestosas construções das assembleias, com toda a pompa e uma assistência das mais elevadas. Até os humanos foram convidados.
Afinal, a nova regra é a democracia e a moeda de troca a liberdade e a paz. Em nome da liberdade e da paz, o respeito mútuo deve prevalecer. Assim, mesmo que aquele acto significasse afronta aos humanos, não se olvidaram de acompanhar, de perto e de longe. Sim, vamos ver até onde isso chega, o que vai mudar, o prognóstico sobre o nosso futuro.
Os inumanos, ávidos de assistir o golpe mortal, aplaudiam aos gritos: Aniquile! Aniquile! Aniquile. No entanto, não foi o que aconteceu. Para a surpresa de todos, o simbolismo da morte da razão não seria a morte de uma vaca apelidada de “razão”.
Uma noite antes do evento, em reunião secreta, decidiu-se em vez de imolar, discursar. Se a disputa era a razão, quem estava do lado certo ou errado, quem compreende melhor as coisas, quem vive ou não os flagelos, então o melhor é traduzir isso em palavras. “A morte da razão”, foi o discurso que mudou tudo e nada.
Nada para os inumamos e tudo para os humanos. Afinal, não era para entender com a razão. Era para ouvir, ler, entender e aplaudir com a emoção. Morreu a razão. Viva a emoção!
Por: ESTEVÃO CHILALA CASSOMA
*Professsor de literatura