No Uíge, os sábados têm um ritual que já se tornou “sagrado” para dezenas de jovens de diferentes estratos sociais, que se reúnem na Escola n.º 68, com a permissão do Gabinete Provincial da Educação, para alimentar a paixão pela leitura e nutrirem o cérebro com todos os benefícios que dela advém. Enfrentando uma “maré” de dificuldades, alimentam o sonho de construir e apetrechar uma biblioteca comunitária inclusiva
É de manhã que começam a chegar, alguns de mochila às costas, outros com um simples caderno para anotações. O cheiro a giz das salas de aula ainda paira no ar quando as carteiras da referida escola começam a encherse de vozes e expectativas. Uns trazem livros gastos, de capas já desbotadas, outros chegam de mãos vazias, mas com olhos brilhando de curiosidade.
São os “Devoradores de Livros”. Indivíduos, com idades compreendidas entre os 15 e os 35 anos, estudantes, professores, trabalhadores e curiosos da literatura, que fazem parte de um clube comunitário nascido em 2024, que transforma cada encontro numa celebração da leitura.
Apesar de terem a referida escola como o centro das reuniões, em algumas ocasiões os membros optam por ler em alguns dos jardins da cidade, com o objectivo de alcançar mais jovens e despertar neles o gosto pelos livros.
No centro da roda, de pasta repleta e pesada, está sempre Daniel Lopes Ferraz, professor, licenciado e leitor compulsivo, que se apresenta como CEO dessa organização filantrópica.
A sua voz guia os primeiros instantes de cada encontro, por volta das 10 horas, quase sempre com uma citação ou uma pequena leitura motivadora. A seguir, os participantes, divididos em pares ou grupos, iniciam o momento de leitura individual, no qual é seguida à risca a regra de silêncio absoluto, que deve ser apenas quebrada instantaneamente pelo virar de páginas, pelo deslizar de canetas sobre cadernos.
O ambiente da sala é de intimidade e descoberta. Um murmúrio discreto acompanha o momento em que cada um escolhe o seu livro, às vezes um exemplar gasto que já passou por muitas mãos, outras vezes uma novidade trazida por um dos membros.
Daniel distribui os títulos que guarda como um tesouro em sua casa, por falta de um outro local adequado para o efeito. “Normalmente trago os livros e cada membro escolhe o da sua preferência. Há alguns membros que também trazem alguns livros para trocar. Às vezes fazemos rolagem, isto é, cada grupo recebe uma obra para ler em conjunto”, frisou. Durante a leitura silenciosa, a sala parece suspensa no tempo.
O som da rua, com motorizadas a passar e vendedores ambulantes a apregoar os seus produtos, chega abafado pelas janelas. Lá dentro, reina a concentração: sobrancelhas franzidas, dedos que percorrem linhas como se quisessem tatuar as palavras na memória, suspiros que escapam quando um trecho causa impacto. O cheiro de papel mistura-se com o pó do chão, criando uma atmosfera de simplicidade e verdade.
Nos dias em que não há rolagem, as vozes dos membros só se fazem ouvir ao entrar na fase de troca de impressões. Nessa fase, cada um faz um comentário sobre a obra que leu e presta alguns esclarecimentos sobre as personagens e o autor.
A agenda reserva também um espaço, o principal, para a partilha de conhecimento sobre um tema previamente definido e de socialização. No qual os participantes interagem sobre diversos assuntos e apresentam sugestões de leitura para a semana. No entanto, ninguém abandona o local sem antes participar do momento de leitura em voz alta ou recitação de poesia.
Mais do que ler mecanicamente, é “devorar” livros
Cada um permanece com o livro que escolheu em mãos, pois tem a possibilidade de o levar para casa com o compromisso de prosseguir a leitura, respeitando o ritmo individual. Além dos sábados, os membros são incentivados a praticar a leitura ao ar livre ao longo da semana.
“Devorar livros é mais do que ler mecanicamente. É absorver, transformar-se, integrar cada palavra no próprio ser”, explicou Daniel Ferraz. A frase ecoa como manifesto, repetida em sussurros pelos mais jovens, que se sentem parte de algo maior.
O nosso interlocutor, quadro do Ministério da Educação, diz que lê em média entre 40 a 60 livros por ano, depende da extensão das obras, mas procura manter média de pelo menos um livro por semana.
Entretanto, já completou 28 livros apenas este ano. “Ainda faltam meses para fechar com saldo positivo”, desabafou. Na sua mesa de cabeceira repousa sempre um exemplar de “Pedagogia do Oprimido”, de Paulo Freire, obra que diz revisitar sempre que deseja recordar o verdadeiro sentido da educação libertadora. O nome do clube, confessa, surgiu como metáfora de quem lê com intensidade, não de forma mecânica, mas como acto de transformação.
“Devorar livros representa essa ânsia, essa necessidade vital de absorver conhecimento”, afirmou. Contou que tais encontros nasceram de forma tímida, com pequenas rodas de amigos que se reuniam para trocar livros e conversar sobre leituras.
A falta de exemplares, de espaços adequados para reunião, bem como as dificuldades de conciliar as actividades pessoais, como compromissos escolares, laborais e familiares, foram alguns dos obstáculos que tiveram de vencer.
“Comecei com os meus livros, comprados há quatro anos. Até hoje continuo a carregar a pasta cheia. Infelizmente, ainda não temos apoio institucional nem doações regulares. Apenas contamos com dez livros, oferecidos pelo escritor Eduardo N’kanga”, lamentou.
O clube conta com cerca de 40 membros inscritos, embora nem sempre todos participem, pelo que a aderência aos encontros aos sábados varia em média entre 20 e 30 pessoas.