Domeste Vicente, pseudónimo de Domingos Vicente, figura como um dos mais instigantes autores da nova geração literária benguelense, precisamente por investir o seu labor criativo no território ainda contestado da textualidade digital. A sua obra vive e floresce nas redes sociais, onde palavras antes restritas aos livros ganham novas margens, mais fluidas e interactivas.
O autor não é um excluído da edição formal, mas um resistente: alguém que conscientemente escolhe a virtualidade como território de circulação, tornando o efémero da timeline num arquivo pulsante.
A sua poesia e prosa configuram-se como práticas de insurgência estética e política. Não apenas por denunciarem injustiças ou emocionarem com lirismos despretensiosos, mas por recusarem o condicionamento editorial e a canonização literária tradicional. Domeste escreve “para ser lido agora”, num “aqui e agora” em que o poema é também intervenção, o conto é também grito, o soneto é também epitáfio.
A sua obra é escrita de um lugar inclassificável, e é aí que reside a sua força. A presença marcante da oralidade, do lirismo filosófico e da crítica social nos seus textos evidencia uma hibridez estilística rara. Em “As Sombras do Rio”, por exemplo, a natureza não é apenas paisagem: é também metáfora do inconsciente colectivo. O rio surge como fluxo ancestral e místico, onde a “sagrada revelação” é murmurada em noites de relâmpagos.
O autor estrutura esse poema em versos de respiração profunda, mesclando introspecção e imaginação mítica, como se o tempo da escrita seguisse o mesmo compasso do tambor ritual que anuncia verdades escondidas. Domeste é também um hábil satirista. Em “Comédia Bíblica)”, reescreve o Gênesis com ironia e agudeza, questionando os fundamentos metafísicos e sociais da criação humana.
A sátira final , “E assim, meus queridos, nasceram os africanos”, não é gratuita; é denúncia de um sofrimento sistematizado e naturalizado historicamente. Aqui, o riso nasce do absurdo trágico da realidade africana, onde a dor parece genética, mas é política.
O texto subverte a narrativa bíblica, inscrevendo nela o sarcasmo de quem foi condenado a “gostar de sofrer”. Em textos como “A Imensidão do Tempo” ou “A Vida Não É Uma Escolha”, percebe-se o pulsar de uma lírica existencial, marcada pela angústia de viver e pela aceitação resignada do destino.
A poesia de Domeste, embora intensamente pessoal, nunca abdica do colectivo. Ele escreve para todos os que dançam “na kizomba do tempo”, entre perdas e memórias, entre fracassos e esperanças. É uma escrita de consolo e de denúncia, de harmonia e de fricção.
O seu “Soneto 25” é uma elegante construção de dor amorosa, onde se reconhece a tradição formal europeia (o soneto petrarquista), mas aplicada a uma afectividade contemporânea e abrasiva.
A “mensagem traiçoeira” que chega “como o som d’água doce borbulhando num atalho” é, na verdade, uma miragem: o amor como farsa ou ilusão. Há aqui uma filiação com os poetas malditos, mas com um tempero próprio , um niilismo tropical, cansado e belo.
“No Meu Último Dia” mostra outro vértice do seu estilo: a elegia como acto de afirmação ética. O sujeito lírico, antecipando a sua morte, recusa ser recordado com lamento, pedindo antes que se cantem “as belas histórias”.
Aqui, a poesia torna-se testamento, pedagogia da memória e da dignidade. O corpo morto não é matéria de sofrimento, mas semente de beleza: “não me condeneis pelos mil defeitos, / mas gabai-me por alguma virtude”.
A dimensão político-social da sua poética aparece com força no texto Ana Mabuila Jaz Viva no Túmulo”. A morte da vizinha é um microcosmo da violência estrutural que acomete os corpos negros e femininos em contextos autoritários. O “dono da bala” é, metaforicamente, o dono do país, e o sangue no chão “desenha o mapa de um país” onde “abrir a boca” é crime.
Este fragmento é uma espécie de epitáfio para os inocentes, um auto de acusação que evoca a memória de todas as Anas silenciadas pela brutalidade do poder. No entanto, Domeste também navega pelo campo da ficção simbólica, como demonstra o belíssimo “O Último Tambor de Walimile”, uma narrativa que poderia figurar entre os contos de Mia Couto, Pepetela ou Ondjaki.
A história da jovem Langa, escolhida pelo tambor Nzuri como guardiã espiritual da aldeia, condensa valores da cosmovisão bantu: o som como ligação com os antepassados, a escuta como aprendizagem, a iniciação como processo orgânico e não arbitrário.
“Não apenas com os seus ouvidos, mas com a sua alma”, diz o ancião Olunjanju, esta é a chave da escuta africana, da oralidade como epistemologia. Domeste Vicente inscreve-se, portanto, numa nova genealogia literária que escapa aos velhos filtros do cânone editorial.
A sua obra, embora não compilada em livro, está já arquivada na memória viva das redes, no coração dos leitores que o seguem, nas narrativas que se partilham por WhatsApp, nos prints que circulam como relíquias.
A pergunta permanece: será preciso um ISBN para validar a grandeza de um autor? Ou será que a literatura encontra o seu estatuto no impacto que provoca e nas verdades que carrega? Em tempos em que se impõem filtros algorítmicos e protocolos editoriais de exclusão, Domeste resiste com palavras livres, textos vagabundos, literatura sem gravata. E talvez seja exactamente aí, nessa fronteira entre o sagrado tambor e o like digital, que a nova literatura angolana encontre o seu pulsar mais autêntico.
Por: Fernando Tchacupomba
Referência bibliográfica sugerida:
Vicente, D. ). Fragmentos digitais [posts e textos não publicados]. Disponível nas redes sociais: Facebook.