Um nome, uma figura de proa (ou talvez uma marca) transformouse, quase involuntariamente, em sinónimo de pavor e de esperança, para lá das fronteiras do seu país. Bastava gritarse por ele e, se os ouvintes fossem de origem europeia, instalava-se o pânico. Entre colonos belgas e portugueses, adultos e crianças, a simples evocação do nome “Lumumba” despertava medo, como se anunciasse um perigo iminente.
Para a elite colonial, Patrice Émery Lumumba representava dor, ameaça e insubmissão. Aos olhos de muitos portugueses, nascidos na metrópole ou descendentes, ele simbolizava a rebelião que poderia abalar os privilégios que desfrutavam neste vasto território que hoje é Angola. Havia quem, tomado pelo pânico, abandonasse tudo numa fuga desesperada, com um único objectivo: salvar a vida.
Esse medo não nasceu em Angola, mas no vizinho Congo Belga, actual República Democrática do Congo (RDC). Para o compreender, é preciso recuar a 1961, ano em que começou oficialmente a Luta de Libertação, que culminaria, 14 anos depois, com a proclamação da Independência Nacional. A história começa na antiga colónia belga, a cerca de 250 km da fronteira com o município do Bembe, na antiga Carmona (hoje Uíge).
As acções desencadeadas pelo movimento independentista congolês, liderado por um até então pouco conhecido Patrice Lumumba, entre 1958 e 1960 provocaram a fuga de colonos (não só belgas, mas também de outras nacionalidades) para o território português.
O jovem nascido em Onalua, a 2 de Julho de 1925, com o nome Élias Okit’Asombo, fundou em 1958 o Movimento Nacional Congolês (MNC) que rapidamente se ornou a principal força nacionalista e fez dele protagonista das negociações que levaram à independência do Congo.
A sua mensagem espalhou-se rapidamente por África, pois, para alguns, era um herói invulnerável; para outros, um “demónio” africano imune a balas, dotado de um espírito justiceiro. Daí que, para os europeus, o simples anúncio de que Lumumba poderia estar a caminho da sua comunidade justificava abandonar tudo.
O nacionalista Pedro Benga Lima “Foguetão” recorda, na sua autobiografia, que muitas famílias chegaram ao Bembe “com crianças nuas e descalças, porque não tiveram tempo para nada”.
Conscientes do impacto que tal mensagem teria no seio da comunidade nativa, que já dava sinais de ambicionar também ser livre e independente, as autoridades portuguesas tentaram contorná-la, fazendo vincar o mito de superioridade do homem branco contra os negros. Assim, a narrativa do “perigo Lumumba” era cuidadosamente explorada para desencorajar qualquer veleidade de revolta.
Mas a mensagem sobre o que realmente se havia passado escapava ao controlo oficial, dado que os seus funcionários autóctones mantinham contacto com familiares e amigos, e a rádio clandestina trazia notícias do Congo para as aldeias e matas angolanas.
Razão pela qual, no Bembe, qualquer recusa em obedecer a um patrão branco podia ser interpretada como influência directa de Lumumba, rotulando o infractor de “discípulo do Diabo”. O medo era tão impregnado que até pesadelos com a figura do líder congolês eram relatados como ameaças reais.
Alguns colonos chegavam a patrulhar armados, esperando um inimigo que, na verdade, nunca pisou Angola. Não era para menos. Para muitos angolanos envolvidos na luta anti-colonial, Lumumba era um símbolo.
Não só libertara o seu país do domínio belga, como defendia uma mensagem anti-imperialista e pan-africanista. Após conquistar a independência o seu país, foi eleito primeiro-ministro, mas o seu mandato foi bastante curto e ficou marcado por uma profunda crise interna e externa, agravada com os desafios que teve de lidar com a secessão de Katanga, rica em recursos minerais.
O seu alegado alinhamento à União Soviética, considerado como ameaça às potências coloniais, acabou por torná-lo um alvo a abater, a todo custo. Engendraram uma conspiração internacional que visou desacreditar o seu governo e só terminou com o seu assassinato em 1960, aos 35 anos, tornando-se mártir para os povos oprimidos.
Embora o início da luta armada em Angola tenha ocorrido depois de ele ter sido enviado, contra a sua vontade, para outra dimensão da vida, a sua influência ressoava também nas matas angolanas, entre guerrilheiros e refugiados.
Segundo testemunho do embaixador João Miranda, a sua voz, transmitida a partir de Kinshasa, chegava a todos os recantos de Angola, reforçando o ânimo de resistência.
Em resposta, a propaganda portuguesa popularizou expressões como “isto aqui não é um Congo”, associando independência a caos, na tentativa de desencorajar o nacionalismo local.
Porém, a vontade de se libertar era imparável, pelo que, na prática, para os colonos, a maioria dos africanos era admirador de Lumumba. Pois, tal sentimento surgiu através de mensagens transmitidas também através de músicas, o que ajudou a perpetuar o mito.
Algumas canções congolesas exaltavam a coragem do líder e dos seus correligionários, e até em Angola, artistas como Prado Paim (galardoado com disco de ouro em 1974) eternizaram a sua figura, reforçando os laços entre dois povos divididos artificialmente pela Conferência de Berlim.
Hoje, recordar Lumumba é mais que um exercício histórico: é relembrar um aviso que deixou à humanidade: “Sem dignidade não há liberdade, sem justiça não há dignidade e sem independência não há homens livres.”
Assim, mais do que nunca, cabe aos governos da República Democrática do Congo e de Angola honrar esse espírito, garantindo condições dignas aos seus povos e preservando a memória dos que fizeram da liberdade a sua causa.
*Jornalista