Pese embora o uso de substâncias psicoactivas esteja comummente interpretada como uma prática negativa e prejudicial à saúde, em Angola, o entendimento de quem consome tem-se mostrado diferente. No caso do pó do tabaco – que muito circula no país–, por exemplo, a substância é vista como um remédio e, para outros, como um “alívio” ao estresse
Já se tinham passado nove horas do dia quando o jornalista, de forma audaciosa, infiltrou-se nas terras do Kikolo, bairro Augusto Ngangula, sem que ninguém se apercebesse que era “intruso” naquela zona, conhecida por não ser muito acolhedora.
Ali, a missão era nada mais e indivíduos cujo passatempo é inalar o pó do tabaco – uma planta que contém mais de 4.000 substâncias químicas, uma das quais a nicotina, uma droga psicoativa muito conhecida.
Não tardou até que o homem do caça-palavras avistasse, ao longo do caminho, um cidadão pousando numa das ‘placas’ do bairro. O tom escuro dos lábios grossos e o avermelhar dos olhos miúdos denunciaram o homem natural do Uíge, que levaria qualquer um a perceber que a nicotina era muito familiar naquele organismo.
A capa fez com que o livro humano fosse julgado pelo repórter, um fiel leitor que precisava agora folheá-lo para perceber se as deduções eram reais ou ilusórias.
O que respondido com um sim, quando este, depois de lhe ter sido dito que não teria o seu rosto estampado no jornal, muito menos o seu nome enunciado, começou por dizer que começou a consumir tabaco há muito tempo, mas que foi em 2009 que a apetência pelo expirar tornou-se mais forte.
Sempre que visitava o tio, ou “pai pequeno”, como prefere chamar, este dizia-lhe que o tabaco faz bem, chegando mesmo a lhe oferecer nalgumas vezes, o que o levou a comprovar as palavras do mesmo.
Sendo assim, sempre que ia à praça do bairro, não hesitava em comprar o produto. No entanto, este não era o único motivo, sendo que, afirma, os amigos do bairro e os colegas na escola também foram gigantes no seu relacionamento com o “pó do ânimo”.
“Naquela altura, tinham entrado novos vizinhos no bairro, que eram da minha faixa etária e, estes também usavam, então, segui o ritmo deles e comecei a sentir que me dava um certo ânimo quando fazia entrar o químico pelas minhas narinas, ânimo este que me levava a expirar.
Além disso, sempre que saía da escola, por volta das 12 horas, eu e mais alguns colegas (incluindo alguns dos vizinhos citados anteriormente) ficávamos cerca de uma hora a fumar numa zona.
Aquilo era ‘um mete e depois passa ao outro’ e sucessivamente assim enquanto conversávamos e convivíamos”. Segundo conta o homem anónimo, numa primeira fase o consumo era feito para expirar mais, mas em 2013 descobriu a “fonte” do tabaco, pelo que passou a comprar com maior frequência para dar o ânimo ao espírito.
Foi através das compras constantes que, tal como se analisa o vinho, começou a fazer distinção de tabaco, a ver qual é o mais forte e qual é o mais fraco.
De um simples consumidor a analista, a experiência fê-lo perceber que quando a cabeça lhe dói enquanto inala, mais forte é o produto, ao passo que se não lhe fizer expirar, não vale a pena, “é mesmo ‘gato’”.
O entrevistado garantiu ao repórter que tem noção de que o tabaco pode causar transtornos à sua saúde, pelo que reforça que lhe foi dito por um médico, que o consumo do pó de tabaco pode gerar consequências positivas para o sistema respiratório, mas que não pode ser feito excessivamente.
Um “limpador” de impurezas e um remédio para doenças
Os longos anos de consumo levaram Jaime, como lhe vamos tratar, a não mais ter noção de quando começou a recorrer ao pó do tabaco. Também residente no bairro Augusto Ngangula, o segundo entrevistado revelou ao repórter que a inalação do pó está ligada ao trabalho de pintura que exerce há já alguns anos.
“Quando inalo o pó do tabaco, consigo expirar as substâncias químicas a que estou exposto quando faço a pintura”, disse. A poeira nas ruas de Luanda é, para Jaime, uma das principais culpadas pelo consumo que faz do tabaco, aliás, reitera, a substância limpa os vestígios da poeira.
Além disso, o indivíduo considera ser um forte remédio para a rinite, conhecida por ser tratada com uma agulha usada para rebentar a inflamação das vias nasais causada pela doença.
Se para Jaime a principal justificativa é o trabalho de pintor, para mestre Augusto, a substância servia para curar a gripe. A expressão é usada no pretérito, pois o serralheiro decidiu deixar de inalar o pó de tabaco por entender que, apesar de ser um “remédio” também era prejudicial à sua saúde.
Entretanto, explica que nunca usou por orientação médica, mas por mera vontade de estimularse, uma vez que, tal como reforça, a substância deixava-lhe contente, o que o fazia continuar a consumir um produto que custa apenas 50 kwanzas.
Ao se aperceber de que o barato lhe poderia custar caro, a ponto de trazer problemas ao peito, viu-se obrigado a abandonar uma prática viciante que lhe podia tirar a vida.
Talvez Serafim também fizesse o mesmo, senão fosse o seu ganhapão. No interior do Hoji Ya Henda, o homem de 46 anos, mais um que preferiu guardar o seu rosto para si, comercializa produtos como cigarro, bebidas espirituosas em embalagens (“pacotinhos”) e faz chamadas, bem como vende o famoso tabaco. Impossível é, para o indivíduo oriundo da República Democrática do Congo (RDC), vender e não consumir o que vende.
O consumo, por sua vez, começou há 13 anos, depois de chegar a Angola, quando se apercebeu de que lhe deixava bem, para além de que nunca teve problemas por conta disso.
Uma quantidade ínfima do produto enrolado num saquinho de plástico, comercializado por uma moeda de 50 kwanzas, pode servir para dois dias de uso.
No entanto, recorre apenas à ‘droga’ quando necessário, uma vez que, tal como desaconselhou ao repórter, quando consumida em exagero num dia, pode gerar problemas de estresse e fortes dores de cabeça.
Em Angola, o congolês encontrou uma forma de sobreviver e sustentar a família de dois filhos e uma companheira, entre outros, através da venda do tabaco.
Por: Onésimo Lufuankenda