Os generais Manuel Hélder Vieira Dias Júnior “Kopelipa” e Leopoldino Fragoso do Nascimento “Dino” começam a ser julgados hoje, no tribunal Supremo, num processo em que está envolvido o grupo empresarial China internacional Fund (CIF) Angola, que investiu um total de 791 milhões, 607 mil e 291 dólares no país, de 2008 a 2017, de acordo com documentos a que o jornal OPAÍS teve acesso
Além dos dois generais, este processo, registado sob o n.º 38/2022, tem como arguido o advogado Fernando Gomes dos Santos, o cidadão chinês Yiu Haiming e as empresas China International Found (CIF), Plansmart International Limited e Utter Right International Limited, sobre os quais pesam as acusações da prática dos crimes de peculato, burla por defraudação, falsificação de documentos, associação criminosa, abuso de poder, branqueamento de capitais e tráfico de influências.
Propriedade do “magnata” sino-britânico Sam Pa, que se encontra preso na China por diversos crimes, incluindo corrupção, o grupo CIF começou a investir, oficialmente, no território nacional, em 2008, altura em que teve a sua empresa CIF Angola, Lda legalizada.
Na época, a Lei de Investimento Privado em vigor estabelecia que os investidores nacionais e estrangeiros só podiam investir, no máximo, USD 5 milhões, com o beneplácito da extinta Agência Nacional de Investimento Privado (ANIP). No entanto, o referido grupo empresarial investiu, através de seis empresas que actuam em diversas áreas, um total de mais de USD 796 milhões, montante este muito acima do que estava previsto na Lei de Investimento Privado, em vigor na época.
De acordo com documentos a que OPAÍS teve acesso, a CIF Angola, vocacionada na promoção de projectos de construção civil e industriais, foi a empresa do grupo que maior investimento fez, estando avaliado em USD 357 milhões e 560 mil. Em segundo lugar está a empresa de produção de cimento e clínquer, CIF (Angola) Cement Company, Lda, com um investimento de USD 343 milhões e 600 mil.
Já a empresa que se encarregava da transportação das mercadorias e de toda a logística do grupo, a CIF (Angola) Logistics Company, Lda, ocupa o terceiro lugar com investimentos avaliados em USD 47 milhões, 158 mil, 687 e 73 cêntimos. A exploração e transformação de inertes, bem como a produção de blocos e pavimentos, foi outro nicho de negócio que despertou o interesse da equipa de gestores da CIF.
Para materializar os seus intentos e abastecer a construção sem recorrer a terceiros, criaram a CIF (Angola) Sand And Gravel Company, Lda e, através desta, investiram mais USD 25 milhões e 487 mil. A imensidão de recursos ma- rinhos existentes na orla marítima angolana também não passou despercebida aos olhares dos chineses ligados a esse grupo. Ávidos por expandir os negócios, criaram a CIF (Angola) Shipping Services Company, Lda.
Por meio dessa empresa, vocacionada à prestação de serviços à indústria marítima, portuária e de pescas, investiram-se USD 12 milhões e 301 mil. Para atender à necessidade de prestação de serviços de consultoria, arquitectura, urbanismo, ambiente, decoração e de gestão de projectos imobiliários erguidos pela sua construtora e não só, o grupo CIF decidiu apostar também neste segmento, criando o CIF (Angola) Properties Mana- gement Company, Lda. Por meio desta, investiu USD 10 milhões e 500 mil.
O gosto dos angolanos por veículos automóveis também é outro segmento que atraiu o magnata chinês. Neste particular, Sam Pa decidiu entrar neste negócio e criou a Fábrica de Automóveis CSG, sediada em Luanda. Porém, para dar corpo ao projecto, sem expor o CIF Angola, recorreu a duas empresas que se encontram sedeadas no exterior, a Powerquert International, Lda e a Peakbright Internacional, Lda, ambas de direito inglês.
Mais tarde, as duas passaram as suas acções à empresa investidora externa CIF Angola que, por seu turno, “aumentou o investimento para USD 77 milhões, 545 mil e 209, de forma irregular”, como reconhecem as autoridades angolanas no documento a que tivemos acesso. A construção da referida fábrica de automóveis havia sido aprovada por Resolução do Conselho de Ministros nº 71/09, de 1 de Setembro, com um valor inicial de USD 30 milhões.
Duas “rainhas” angolanas no centro do império chinês em Angola
De salientar que a primeira empresa do grupo China international Fund (CIF) Angola foi registrada, em 2008, em nome de Lourdes Maria Caposso Fernandes, como representante da sociedade Plansmart international Lda, uma Offshore incorporations, e Paula Andrea Custódio e Silva inglês.
Esta cidadã angolana entrou na sociedade como representante da empresa Utter Rigth interna- cional Limited, com sede nas ilhas Virgens Britânicas, um centro de offshores, conforme atesta a escritura pública registrada a 11 de Abril de 2008 no Cartório Notarial do Guiché Único de Empresa e publicada em Diário da República a 30 de Maio do mesmo ano.
As duas empresas acima mencionadas, pertencentes ao magnata Sam Pa, eram, até 2015, altura em que este foi detido no seu país, as reais proprietárias de todo o património do grupo CIF em Angola, sendo a Plansmart detentora de 95% e a Utter Rigth de 5%.
“Em princípio, a empresa CiF hong Kong é que estava para vir fazer este investimento em Angola, por intermédio de uma sucursal que pretendiam criar. Porém, com o passar do tempo, Sam Pa desistiu dessa ideia e optou por constituir essas duas empresas britânicas, pertencentes às suas duas mulheres, que são as donas da empresa CiF Angola”, afirmou uma fonte.
A presumível entrada dos generais
Segundo apurou este jornal, face à sua punição por crime de traição ao Partido Comunista Chinês e corrupção, os seus representantes legais e sócios, reunidos em hong Kong, deram início a um programa de transferência de parte das acções da CiF para uma outra empresa, com vista a salvaguardar os interesses de Sam Pa, caso o governo chinês entrasse na justiça para ficar com tal património.
“Eles aprovaram uma resolução através da qual mandaram passar 60% das acções de todo o património da CiF para a empresa IF – investimentos Financeiros, S.A, cujo último beneficiário é o general Dino, e os outros 40% ficaram repartidos da seguinte forma: 38% com a Plansmart e 2% com Utter Rigth”, atesta a nossa fonte. Apesar de não ser muito conhecida, a IF – investimentos Financeiros SGPS, S.A. se encontra a operar desde 2011, ano em que foi constituída como socieda- de anónima no Cartório Notarial do Guiché Único de Empresas.
Os seus criadores registraram como sede o apartamento n.º 5, do edifício 108, da rua 50 do bairro Nova Vida, de acordo com o Diário da República n.º 110, de 11 de Junho de 2012, a que OPAÍS teve acesso. Na época, o general Dino já havia cessado as funções de chefe das Comunicações do Presidente da República, pois trabalhava so- mente como consultor da Casa de Segurança, e prosperava no mundo empresarial, o que fez com que fosse considerado a pessoa ideal para cuidar do império do “amigo chinês”.
Ao passo que o general Kopelipa, por ser uma das pessoas com quem Sam Pa mais interagia, havia sido indicado pelo então director do grupo CIF em Angola, identificado apenas por Braile, para representar o grupo empresarial junto das autoridades angolanas, quando se achasse necessário. Segundo apurou este jornal, no momento em que foram notificados a procederem à entrega dos bens, o general Dino terá procurado deixar claro que a IF – investimentos Financeiros detinha apenas 60% de todo o património da CIF em Angola. E, tendo em conta que o general Kopelipa era o representante legal da CiF em Angola, recebeu os títulos da IF das mãos do general Dino e, por força da lei, entregou à PGR.
Suposta tentativa de corrigir ilegalidade “escudada” por decreto presidencial
Em 2017, com a aproximação do fim do mandato do Governo em vigor, os responsáveis do grupo CiF Angola, encabeçado pelo cidadão chinês You hai Ming, decidiram regularizar toda a situação com vista a evitar problemas futuros com as autoridades angolanas. De acordo com uma fonte de OPAÍS, que chegou a trabalhar com o grupo CIF, tentaram regularizar os processos, a começar pela legalização dos terrenos onde haviam erguido os seus projectos, uma vez que não tinham direito de superfície.
A documentação de todos os equipamentos provenientes da China, instalados nas referidas fábricas, também não estava em conformidade com a lei. A solução foi recorrer à então Unidade técnica para o investimento Privado (UTIP), mas o processo tornou-se mais complexo do que imaginaram.
Tudo porque, durante as vistorias realizadas pelos técnicos da UTIP aos empreendimentos, os seus responsáveis apresentavam valores irreais, ou seja, abaixo do que realmente haviam investido, em alguns casos, e, em outros, a estimativa era mais para cima e não conseguiam, muitas vezes, comprovar documentalmente. No entanto, os peritos consignaram nos seus relatórios que, após visita de acompanhamento e fiscalização aos projectos de investimento, foi possível constatar que os mesmos encontram-se implementados.
Como resultado, atendendo à parceria que existia entre o CIF Angola e o Governo, o então Presidente da República exarou, a 23 de Maio do mesmo ano, o Despacho Presidencial n.º 119/17, que regulariza tais investimentos, à luz da Lei do investimento Privado que entrou em vigor dois anos antes, isto é, em 2015.
Para dissipar eventuais dúvidas sobre a legalidade do referido acto, explica no referido diploma que, segundo a Lei de investimento Privado acima mencionada, os projectos de investimentos aprovados antes da entrada em vigor desta e do seu regulamento, continuam a reger-se, até ao respectivo termo da sua implementação, pelas disposições da legislação e dos termos ou contratos específicos, com base nos quais a autorização foi concedida.
De acordo com a nossa fonte, o grupo CIF começou a fazer estes investimentos e terá usufruído dos privilégios que o GRN tinha de importar mercadorias sem declarar junto das autoridades alfandegárias, ou seja, sem pagar impostos. De salientar que, em Maio de 2017, a UTIP e o CIF celebraram um contrato de investimento privado, para regularizar os investimentos que estes haviam feito no sector imobiliário, no qual justifica-se que o Estado procede deste modo por manifesta decisão da referida empresa em submeter a regime de investimento privado o investimento que realizou na construção dos projectos imobiliários, Condomínio Residencial Vida Pacífica e 5.800 moradias do KK.
“É aprovado sob regime contratual, o projecto de investimento denominado Projecto imobiliário CiF, no valor de USD 694 milhões, 842 mil e 100, bem como o contrato de investimento privado”, lê-se no Despacho Presidencial n.º 122/17, de 23 de Maio. Diz ainda que, ao abrigo da Lei de investimento Privado, o investimento acima mencionado seria realizado de duas maneiras, designadamente de USD 20 mil através da alocação de fundos próprios e mais de USD 642 milhões através da alocação de máquinas, equipamentos, acessórios e outros meios fixos.
Salvaguardando o bem-estar dos angolanos
O então Presidente da República, José Eduardo dos Santos, esclareceu, no referido diploma-legal, que tomou a decisão de aprovar os contratos celebrados entre o CiF Angola e a UTIP, representados por You hai Ming e Ernesto Manuel Norberto Garcia, por ser uma medida que se enquadrava nos esforços que estavam a ser despendidos para o desenvolvimento do país. Além de que o Regulamento do Procedimento para a Realização de investimento Privado estabelece que os investimentos privados de montante superior ao contravalor em Kwanzas, equivalente a USD 10 milhões, são da sua competência, enquanto titular do Poder Executivo.
“O Governo está empenhado em promover projectos de investimentos que visam a prossecução de objectivos económicos e sociais de interesse público, nomeadamente o aumento da produção interna, a melhoria do bem-estar das populações e o aumento do emprego”, lê-se no documento, a que o jornal OPAÍS teve acesso.
O Estado, por meio do Ministério Público, representado no julgamento pelo magistrado Lucas Ramos, moveu o processo-crime 38/2022, em que foram arroladas 38 testemunhas e declarantes. Já a defesa dos arguidos está a cargo dos advogados Amaral Gourgel, Benja Satula e Bangula Kemba.