A assinatura do Memorando de Entendimento entre o Governo e a UNITA pôs fim a quase 30 anos de guerra civil. Mas a paz que emergiu naquele dia não nasceu do nada — foi o resultado de um percurso sinuoso, marcado por sucessivos acordos, rupturas e tentativas frustradas de reconciliação nacional. Do Alvor (1975) ao Luena (2002), passando por Bicesse (1991) e Lusaka (1994), a história da paz em Angola é também a história da sua sobrevivência como Estado
Alvor (1975): A independência que nasceu sob fogocruzado Assinado a 15 de Janeiro de 1975, o Acordo de Alvor juntou, pela primeira vez, Portugal e os três movimentos de libertação — MPLA, FNLA e UNITA — num pacto que visava gerir a transição à independência.
O documento previa um governo transitório, forças armadas unificadas e eleições gerais, mas a realidade… infelizmente foi outra. As desconfianças ideológicas, a corrida ao poder e as interferências externas (EUA, URSS, Cuba, Zaire e África do Sul) transformaram o acordo num papel sem força política. Poucos meses depois, as tréguas ruíram e o país mergulhou na guerra civil.
“O Acordo do Alvor foi um espartilho para os comprimir, mas demasiado frágil para os conter. O único propósito que movimentos tinham em comum era a aspiração à independência, mas queriam ser os protagonistas exclusivos deste feito”, como explica Onofre dos Santos, nacionalista, constitucionalista e académico angolano, em entrevista a este jornal.
Para o jurista, o fracasso do Alvor resultou da “falta de maturidade política e histórica” e de um “calendário de transição precipitado”, marcado pela instabilidade da própria Revolução dos Cravos em Portugal.
Bicesse (1991): Esperança democrática e guerra reacesa
Quinze anos depois, com o fim da Guerra Fria e a queda do bloco soviético, Angola viu-se obrigada a reavaliar o seu modelo político. O Acordo de Bicesse, assinado a 31 de Maio de 1991, foi um marco — legalizou os partidos políticos, previu eleições livres e o desarmamento das forças beligerantes. Em Setembro do ano seguinte, em 1992, Angola realizou as suas primeiras eleições gerais multipartidárias, com a presença de observadores internacionais e uma grande mobilização popular.
Contudo, a recusa da UNITA em aceitar os resultados e a falta de verificação efectiva do desarmamento das forças conduziram novamente à guerra. “Foi a guerra que tornou inevitável a mudança de regime”, recorda Onofre dos Santos.
“O MPLA teve de negociar, e as eleições foram feitas em tempo recorde, sem as garantias necessárias. Foi um processo de tudo ou nada. A UNITA nunca poderia aceitar a derrota porque significava o regresso do MPLA ao poder e a inutilidade da sua luta”, comenta.
Lusaka (1994): O protocolo da inclusão
Em 1994, com as hostilidades a prolongarem-se e a pressão internacional a aumentar, surgiu o Protocolo de Lusaka. Mais técnico e detalhado, o acordo previa a integração das forças militares, a reinserção política da UNITA e um Governo de Unidade e Reconciliação Nacional, o GURN. Novamente, o texto era ambicioso, mas parcialmente cumprido.
A desconfiança entre as partes, a lentidão na reintegração e o regresso de confrontos esporádicos acabaram por minar a aplicação do referido protocolo. “Lusaka introduziu a ideia de que ninguém devia ser excluído do poder.
Foi daí que nasceu o Governo de Unidade e Reconciliação Nacional”, salienta Onofre dos Santos, para depois explicar que, infelizmente, a filosofia da partilha desapareceu depois de 2008. “Precisamos de um modelo em que todos participem, de acordo com o peso que têm no eleitorado. As eleições deviam ser como uma festa onde todos têm direito à sua fatia do bolo”, comenta.
2002: A viragem e o cessar-fogo do Luena
O ano de 2002 foi decisivo. A morte de Jonas Savimbi, a 22 de Fevereiro daquele mesmo ano, na localidade do Lucusse, na então província do Moxico, alterou a correlação das forças. Isolada e enfraquecida, a UNITA aceitou negociar. Com a morte do seu líder-mor, foram dados inúmeros passos nas semanas que se seguiram. Um cessarfogo entrou em vigor à meia-noite do dia 13 de Março, como parte de um plano de quinze pontos elaborados pelo Governo para preservar a paz.
Em primeira instância, foi assinado o documento que ficou conhecido como o Memorando de Entendimento do Luena, no dia 30 de Março de 2002, entre as chefias militares do Governo e da UNITA. E, no dia 4 de Abril de 2002, em Luanda, no então Palácio dos Congressos, o Governo e a UNITA assinaram o Memorando de Entendimento que pôs fim definitivo à guerra civil.
O acordo determinou o cessar-fogo imediato, a entrega das armas e a reintegração de combatentes na vida civil, com o apoio das Nações Unidas e de parceiros internacionais. “Em 2002, o MPLA e o Presidente José Eduardo dos Santos mostraram respeito e boa-fé — algo que não existiu nem no Alvor nem em Bicesse. Este respeito mútuo é o verdadeiro alicerce da paz”, disse o nacionalista Onofre dos Santos.
As feridas e as lições da paz
A paz trouxe o início da reconstrução, mas também novos desafios: a desmobilização de milhares de ex-combatentes, a reabilitação de infra-estruturas e o combate à pobreza extrema. Relatórios do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), do Banco Mundial e da Human Rights Watch apontam que, apesar dos progressos, Angola enfrentou desequilíbrios regionais e desigualdades sociais persistentes.
“Hoje vivemos uma paz consolidada, mas as metas do desenvolvimento continuam atrasadas. O que devia ter começado em 2010 ainda está por fazer”, afirmou Onofre dos Santos.









