Ontem, Angola assistiu a um gesto inédito, carregado de simbolismo e peso histórico. A condecoração de Holden Roberto e de Jonas Savimbi, líderes fundadores da UPA/FNLA e da UNITA, respectivamente, pelos seus feitos na luta de libertação nacional. Um acto que, por si só, não reescreve o passado, mas solidifica a fresta aberta pelo Presidente da República por onde pode entrar o espírito de perdão, de paz e de reconciliação nacional, desde que os passos seguintes confirmem a determinação política de seguir por esse caminho.
O desafio é profundo. Durante décadas, fomos educados (nós, os adultos de hoje) a olhar para o percurso de Holden e de Savimbi com desconfiança, quando não com repulsa.
As gerações que nos seguem, crianças e adolescentes que hoje atravessam os corredores das escolas públicas e privadas, recebem a mesma herança simbólica. Temos sido, desde 1975, moldados a exaltar António Agostinho Neto como o Herói Nacional, o Poeta Maior e o Líder Fundador da Nação Angolana, por ter proclamado “perante África e o Mundo” o nascimento deste país na histórica madrugada de 11 de Novembro de 1975, em Luanda.
Mais do que um líder político, transformou-se numa espécie de presença omnipresente, apresentada a cada criança quase desde que nasce. Pode parecer estranho, mas é real. Se a criança nascer antes de Setembro, conhecerá Neto no dia 17 (data comemorativa do seu nascimento), pelas actividades transmitidas nos órgãos de comunicação e pelas conversas dos adultos que celebram o feriado com amigos e família.
Se vier depois, conhecerá o Pai da Pátria em Novembro, no Dia da Dipanda, quando a memória da proclamação da independência volta a erguer-se nos discursos oficiais e nas solenidades escolares. Mas Jean Piaget recorda-nos que, até aos dois anos, tudo isso é irrelevante porque a criança vive num universo sensório-motor, onde os símbolos ainda não encontram tradução.
No entanto, dos dois aos sete anos (o período da inteligência simbólica), a construção do imaginário torna-se decisiva. É então que a figura de Neto penetra de forma mais profunda na formação emocional, afectiva e cognitiva dos pequenos. Isso por via das actividades comemorativas organizadas nas creches e nos jardins-de-infância.
As escolas primárias intensificam os projectos que exaltam o Poeta Maior e Fundador da Nação e atraem pais e encarregados de educação a assistirem a declamações feitas por crianças que ainda mal compreendem o sentido dos versos que recitam.
As imagens de Neto (em bustos, murais, livros escolares, visitas ao Memorial na Praia do Bispo ou à Estátua do Largo 1.º de Maio) tornam-se representações que, segundo o académico suíço Piaget, funcionam como verdadeiros substitutos do real. A criança passa a pensar por meio dos símbolos que lhe são oferecidos.
Quando chega à 5.ª classe, já no estádio da inteligência lógico-concreta, descrito por Piaget, tudo ganha estrutura. As crianças têm acesso a manuais elaborados pelo Ministério da Educação, com base nas suas características etárias e psicológicas, com temas essenciais que lhes permitem ter uma “boa compreensão dos factos históricos”.
No Manual de História, ao abordar a temática sobre a luta de libertação nacional, Agostinho Neto surge como protagonista central do processo. Não obstante a isso, Neto, Holdem e Savimbi aparecem como líderes dos três principais Movimentos de Libertação Nacional de Angola. Essa unidade temática termina quase com um alerta: “Surgiram divergências entre os três movimentos e, por conta disso, o país viu-se envolvido numa guerra longa e desgastante”. E à medida que o aluno avança no currículo (da 6.ª classe até ao ensino médio), o retrato vai-se consolidando.
Na abordagem sobre os factos ocorridos após a proclamação da independência, Agostinho Neto permanece na sua posição e Holden Roberto e Jonas Savimbi aparecem em posição secundária, enquadrados, sobretudo, pelas divergências políticas posteriores e pela guerra que se seguiu. De um lado, o herói; do outro, os adversários cujas decisões contribuíram para o prolongamento do conflito.
Em determinados parágrafos, a narrativa cristaliza-se de forma tão subtil quanto eficaz. Explicase que a FNLA desistiu da guerra fratricida, que continuou a levar a cabo mesmo após a independência, enquanto Savimbi continuou a luta até 22 de Fevereiro de 2002, data da sua morte. Mais tarde, na 12.ª classe, ao estudar o conflito interno e a influência das superpotências saídas da II Guerra Mundial, o jovem aprende que FNLA e UNITA estiveram alinhadas com o Ocidente, enquanto o MPLA recebeu apoio soviético e dos Países não Alinhados.
Os militares zairenses, munidos de armamento americano, que ajudaram a FNLA a tomar Caxio e a tentar avançar sobre Luanda bem como as colunas sul-africanas que progrediram por Benguela, Lobito, Luena e Luau (em apoio à UNITA) são apresentados como peças de um tabuleiro geopolítico que empurrou o país para o abismo.
No fim do percurso escolar, a conclusão implícita é quase inevitável de que “tudo mudou para melhor” com a morte de Savimbi, visto que se abriu o caminho para a paz e para um novo ciclo político. Portanto, a associação entre estes ensinamentos e as décadas de discursos públicos sobre destruição, luto e sofrimento solidificou nas pessoas a ideia de que Holden Roberto e Jonas Savimbi foram, em grande parte, responsáveis pela “nossa desgraça”.
E, de novo, Piaget ajuda-nos a compreender por que o conhecimento constrói-se na interacção entre o indivíduo e o meio. Se o meio repete a mesma narrativa durante anos, ela torna-se parte da estrutura mental colectiva. Por tudo isso, a iniciativa do Presidente da República, João Lourenço, não é apenas um gesto cerimonial.
É um possível ponto de viragem, capaz de reabrir debates, reavaliar memórias e, talvez, resgatar a tão invocada “reconciliação nacional e unidade da Nação”. Resta saber se teremos maturidade histórica e política para transformar esse passo simbólico numa verdadeira mudança de consciência.
O Congresso Nacional da Reconciliação, realizado sob o lema bíblico “Eis que faço novas todas as coisas” (Apocalipse 21:5) pela Conferência Episcopal de Angola e São Tomé (CEAST), e que amanhã termina, pode desempenhar um papel determinante nesse processo.
A sua força dependerá da capacidade de servir de um “momento de introspecção colectiva, cura histórica e restauração da esperança nacional”. Se assim for, poderemos chegar ao ponto mais difícil, mas também o mais necessário, que consiste em transformar o perdão num “compromisso com um novo rumo para a Nação”.
Por: PAULO SÉRGIO
Jornalista









