Nos dias 19 e 20 de Setembro de 2025, a Ordem dos Advogados de Angola realizará na cidade do Cuito, província do Bié (Universidade do Cuanza), a Conferência Nacional dos Advogados, sob o lema: “O papel das Instituições Republicanas e o valor da independência”. Compreendo que, mais do que um simples encontro institucional e até de networking entre profissionais do foro, este evento representa um momento de reflexão profunda sobre o papel do advogado na preservação da justiça, da liberdade e da dignidade humana.
Num contexto em que, 50 anos depois da proclamação da independência, as instituições republicanas ainda são chamadas a se edificarem e a reafirmarem a sua autonomia, assim, a advocacia surge como pilar essencial para o equilíbrio entre os poderes e a defesa das garantias constitucionais.
Como bem ensinou Francesco Carnelutti, “não há direitos sobre a pessoa, mas direitos da pessoa”. Cabe, portanto, ao advogado ser o guardião desses direitos, assegurando que o ser humano jamais seja reduzido a objecto.
É nesse sentido que o lema da conferência ganha actualidade e força: reafirmar a independência da advocacia é, ao mesmo tempo, proteger a justiça, a cidadania e o próprio Estado Democrático de Direito. É nesse contexto que se insere a presente reflexão, um convite à introspeção sobre o papel do advogado, o sentido da sua missão e os limites da sua técnica. = Quando a defesa exige mais que Leis = No exercício da advocacia, aprendemos que cada causa carrega uma história.
Algumas são travadas com a frieza dos códigos e a força dos argumentos técnicos; outras, porém, exigem de nós muito mais do que o conhecimento da lei. Exigem humanidade, resiliência, empatia, silêncio e muitas vezes oração, pois os processos definem o futuro da vida de uma família. Nem todas as batalhas se vencem apenas com artigos, alíneas e jurisprudências.
Existem causas em que o papel do advogado vai além do Tribunal: somos chamados a sustentar famílias, restaurar dignidades e proteger sonhos. Em certos momentos, a defesa extrapola o direito e entra no campo do propósito — porque defender é, antes de tudo, acreditar, como nos ensina Calamandrei na sua filosofia humanista a advocacia não é uma fria aplicação de normas, mas uma paixão pela justiça. Há clientes que chegam a nós com processos, mas também com feridas, com contratos, mas também com esperanças.
E é nesse equilíbrio, muitas vezes desequilíbrio, entre a razão e a emoção, entre a norma e a fé, que se encontra a verdadeira essência da advocacia.
Porque há causas que exigem estratégia, técnica e rigor — mas há outras em que é preciso defender de joelhos postos à transcendência, com humildade, coragem e confiança, sempre na busca constante da realização da justiça. Ser advogado não é apenas dominar as leis; é compreender que cada decisão pode mudar vidas.
E, quando o Direito se encontra com o Humano, surgem as defesas mais poderosas: aquelas que se sustentam, simultaneamente, na técnica, na ética e na “fé”. Francesco Carnelutti, renomado jurista italiano, advoga que o homem é “mais do que uma coisa” — uma afirmação poderosa que nos ajuda a compreender porque a defesa não pode ser meramente técnica.
Ele distingue com clareza o que é “coisa” do que é “pessoa”, afirmando que: “o homem teria as características gerais da coisa, mas, além delas, teria qualidades próprias da pessoa”; como tal, “não há direitos sobre a pessoa, mas direitos da pessoa” Essa ideia reforça que, para além da defesa legal, há uma intervenção que resguarda a dignidade intrínseca do ser humano, tal como nos escreve o filósofo angolano Lourenço Flaviano Kambalu, na sua Democracia personalista a luz de Pietro Pavan.
O advogado, ao agir, não defende meros interesses, mas reconhece um sujeito que não pode ser reduzido a objecto, devendo ser tratado com respeito à sua dimensão pessoal. Carlos Pinto de Abreu, ao refletir sobre a essência da advocacia, destaca que o termo advocare vem do latim, “ajudar, defendendo e chamando à razão”: “O advogado é, com todos os elogios e críticas que se lhe fizeram, (…) confidente, conselheiro, quase um confessor. É alguém a quem uma pessoa aflita, desprotegida, vulnerável confia os seus sentimentos”. Sua função vai muito além do foro: é também humana, de proximidade e empatia.
Seu escritório se transforma inúmeras vezes numa verdadeira sacristia ou confessionário. É exatamente nesse cruzamento entre técnica e humanidade que reside a força do Advogado moderno: um profissional que entende o cliente como uma pessoa, e não apenas como um caso. No nosso contexto, a Constituição angolana e a doutrina enfatizam o tratamento humano aos arguidos.
O princípio da presunção de inocência, reforçado pelo artigo 67.º, n.º 2 da Constituição da República de Angola, impõe que “não vale tudo” — garantindo que o réu não seja tratado como culpado até transitado em julgado.
Além disso, os princípios processuais do contraditório e da ampla defesa são pilares no nosso sistema. Conforme destacado por Paulo Mascarenhas, “o contraditório constitui o meio técnico para a efectivação da ampla defesa”, sendo essencial garantir ao acusado os mesmos direitos e condição de acesso à justiça.
Esses mecanismos não são meramente formais. Eles são, também, garantia de humanidade e dignidade na aplicação prática da justiça. “Quando a defesa exige mais que Leis” essa frase não é apenas poética — é um chamado à advocacia que reconhece a pessoa por trás do processo.
A defesa efectiva não se limita à lei, mas reconhece que o Direito só ganha completude quando é praticado com empatia, presença e compromisso ético.
É nesse espírito e exercício puro e duro da profissão que afirmamos: as defesas mais sólidas não nascem apenas de dispositivos legais, mas daquele instante em que o advogado se torna voz, escudo e esperança. A verdadeira justiça, ativada pela técnica, encontra seu pleno significado quando se alia à coragem, à compaixão e à dignidade humana.
Por: FERNANDO KATCHINGONA
Bem-haja a conferencia da OAA
Advogado