O tempo, em Angola, não é apenas medida cronológica, mas expressão vivida de sofrimentos, resistências, superações e aprendizagens profundas.
Ao longo dos cinquenta anos de independência, o povo angolano percorreu uma trajectória densa e complexa, marcada por momentos de grandeza e períodos de dor. Habitar o tempo é, neste contexto, mais do que viver os dias: é mergulhar na experiência interior e colectiva que os transforma em história com alma.
A independência de Angola, proclamada em 1975, representou um marco de libertação face ao domínio colonial. No entanto, este novo tempo nasceu em clima de divisão e disputa interna.
A esperança inicial cedo foi obscurecida por conflitos ideológicos, rivalidades armadas e interferências externas, que desencadearam um prolongado período de guerra civil.
Durante quase três décadas, o país viveu sob o signo da violência, da separação, da fuga e da instabilidade. Este tempo de guerra não se reduziu a batalhas ou confrontos. Desenrolou-se nas entranhas da sociedade, nos lares desfeitos, nas escolas que fecharam, nos caminhos interrompidos e minados, nos corpos e nas almas marcados pelo medo e pela perda.
O sofrimento foi vivenciado em todas as províncias, nas cidades e nas matas, nas vozes caladas, nas mães que sepultaram os filhos e os avós destes, e nas crianças que perderam a infância.
Contudo, mesmo nesses anos sombrios, houve gestos de resistência humanizadora: catequistas, freiras, professores e lavradores que mantiveram viva a dignidade possível.
Com o cessar efectivo das hostilidades em 2002, abriu-se um novo ciclo de paz. Mas esta paz trouxe consigo desafios profundos. Se, por um lado, possibilitou a reconstrução física de estradas, hospitais e escolas, por outro lado revelou a urgência de uma reconstrução ética e humana. Muitas feridas ficaram por tratar, muitas histórias não foram contadas, muitos actores do quotidiano continuaram sem reconhecimento.
A reconciliação não se consolidou apenas com a assinatura de acordos; exigia escuta, inclusão e memória partilhada. Durante os anos subsequentes, o país conheceu avanços importantes no plano da estabilidade institucional e da reabilitação de infra-estruturas.
Mas a juventude — maioria numérica da população — passou a enfrentar novos tipos de exclusão. Muitos jovens, nascidos após a guerra, sentemse hoje desenraizados do tempo histórico, confrontados com o desemprego, a precariedade, a falta de espaço real de participação e o apagamento das suas aspirações.
A esperança tornou-se para muitos uma promessa adiada.Mesmo assim, emergem formas criativas e resilientes de presença juvenil: projectos culturais, formação profissional, iniciativas comunitárias, linguagens poéticas e artísticas, movimentos informais que procuram habitar o presente com sentido. Nesses espaços, vê-se que o tempo ainda pulsa como oportunidade — não apenas para resistir, mas para renovar.
A juventude, apesar das frustrações, mostra-se capaz de reinvenção, de trabalho paciente e de compromisso com o bem comum. A memória, por sua vez, revela-se como ponto vital de amadurecimento. Recordar os episódios mais dolorosos não significa perpetuar o trauma, mas darlhes um lugar digno na construção de um futuro mais justo.
Uma nação que se reconcilia com a sua história, sem omitir nem romantizar, prepara melhor os seus cidadãos para o discernimento e a responsabilidade.
A memória, como presença do passado no presente, torna-se matéria-prima de cidadania. Viver o tempo com consciência é reconhecer que o instante presente carrega consigo não só o eco do que fomos, mas também o embrião do que ainda podemos ser.
A espiritualidade, a vida familiar, a convivência comunitária e a solidariedade popular compõem um tecido resistente, que escapa às estatísticas mas sustenta a vida real.
É neste quotidiano discreto que se torna visível a capacidade angolana de transformar cicatrizes em caminho. A esperança, finalmente, aparece não como consolo ilusório, mas como energia criadora.
Ela não se apoia em promessas frágeis, mas na coragem dos gestos que constroem, dia após dia, um tempo novo. Ser esperança, em Angola, é acreditar que cada acto de verdade, cada palavra justa, cada compromisso com o próximo é uma forma de converter o tempo em pátria. A juventude, as mulheres, os camponeses, os professores e os artistas desempenham neste processo um papel insubstituível.
Angola, cinquenta anos depois da independência, continua a ser um país em busca de si mesmo. Mas é também uma pátria fecunda, cheia de vozes, ritmos, tradições e forças regeneradoras.
O tempo, se for vivido com verdade, pode deixar de ser inimigo para tornar-se mestre. E só assim será possível que o tempo se torne, de facto, pátria habitada.
Por: JOÃO BAPTISTA KUSSUMUA