Diz-se que o tempo é o melhor remédio. E essa máxima vai-se confirmando, visto que a dor cede lugar a uma saudade silenciosa, que fala por si. Mas essa transformação só acontece verdadeiramente entre os que, de alguma forma, foram próximos de quem partiu. E, nestes casos, o que resta de uma vida são, com certeza, os traços que permanecem depois da travessia para outra dimensão.
É o que resta, três anos depois da sua morte, do Presidente José Eduardo dos Santos. Com uma particularidade curiosa: é agora que, paradoxalmente, o vamos conhecendo melhor. Parece estranho, mas é real. Passamos a ter mais espaço, mais distanciamento e mais vontade de desvendar facetas do homem que liderou Angola por cerca de quatro décadas.
Não se trata apenas do reconhecimento tardio dos seus feitos, agora que muitas famílias são atormentadas pela crise económica que teima em resistir, condenando ao fracasso algumas acções que visam a diversificação de fontes de geração de receitas.
Em tempos de escassez, cresce a nostalgia por um passado recente que muitos julgavam ser pior. É nesse contexto que se revela uma imagem diferente de José Eduardo dos Santos (JES), antes “endurecida” por “preconceitos” ou “narrativas oficiais”. Essa nova percepção emerge, curiosamente, nos lugares mais banais.
Está nas conversas nos táxis partilhados, nos “quadradinhos” (Toyota Hiace), nos “acaba de me matar” (Toyota Starlet), ou nos V8 que disputam passageiros entre as paragens.
A sua figura ecoa nos mercados, nos armazéns, nos supermercados e nas ruas poeirentas, onde a memória dos bons e maus tempos é motivo de uma boa cavaqueia.
E não para por aí. Essa outra faceta é também evocado nas enfermarias dos hospitais, entre os pacientes e acompanhantes que, enquanto esperam, se recordam de um tempo em que, certo ou errado, consideram que havia mais esperança.
Embora reconheçam os avanços registados no sector da saúde nos últimos anos. O mesmo se sucede nos estabelecimentos de ensino de diferentes níveis. Até nas creches ou jardimde-infância, sejam públicas ou privadas, onde os adultos falam e as crianças escutam, levando para casa, sem querer, fragmentos da memória colectiva. Situações há, que elas próprias carregam em silêncio tal mensagem, ouvida em conversa dos pais.
Mas há uma faceta ainda mais profunda e menos emocional: a que nos é revelada por profissionais que com ele trabalharam. Faceta que surge nas biografias, nas autobiografias e nos testemunhos dispersos de personalidades cujos percursos de vida cruzaram-se com factos da história de Angola, da luta de libertação nacional aos últimos anos do Executivo de JES. Uma imagem de um homem simultaneamente distante e próximo (dos governados), discreto e meticuloso, temido e admirado. Um homem de silêncios eloquentes e “de bom senso”, como nos lembra o embaixador João Miranda, na sua autobiografia.
No seu testemunho, Miranda recorda o momento em que foi convidado para chefiar o extinto Ministério da Informação, em 1994. À data, era vice-ministro das Relações Exteriores, após ter desempenhado a mesma função no extinto Ministério da Informação. A prática de JES era clara: convocava as pessoas ao Palácio para uma conversa antes de as nomear.
E, com isso, antes mesmo de entrarem ao Gabinete Presidencial, os seus assessores alertavam a pessoa que aguardava para ser recebida, na sala de espera, que o despacho de nomeação já estava assinado.
Numa dessas conversas, Miranda ousou sugerir outro nome Hendrick Vaal Neto – que além de ser seu mais velho era o viceministro do sector na altura e já tinha exercido o cargo de secretário de Estado de Informação do Governo de Transição de Angola. E, em resposta, João Miranda voltou a ver no Presidente a postura reservada, mas genuinamente escutadora que lhe era característica.
Não houve indícios de aprovação ou reprovação imediata. Apenas uma pergunta: “Então quer continuar como vice-ministro das Relações Exteriores?” Depois de algum tempo Hendrick ascendeu a ministro. Era assim que operava. Ouvia com muita atenção os seus colaboradores.
Observava com cuidado. Não fazia teatro para as câmaras. As imagens que víamos na televisão, dele a escutar os técnicos durante as visitas de campo, correspondiam ao que fazia longe das lentes. Combinava o silêncio, escuta e a análise. Traços apontados nas mais respeitadas academias de liderança do mundo como características de um líder metódico e avesso a dramatismos.
Tais qualidades se relevavam de elevada serventia, principalmente nos momentos em que reinavam, tanto no seio do Governo como da mais alta cúpula do partido no poder, sentimentos de apreensão, cepticismo, medo e desconfiança sobre algum processo em curso.
O economista Archer Mangueira confirma esse perfil na sua autobiografia. Refere-se ao período de transição do regime de partido único para a democracia, entre 1991 e 1992, como um momento em que JES conduziu esse processo histórico com serenidade, ponderação e firmeza.
Nos apresenta, por outro lado, um homem reservado, organizado, profundamente humanista, embora, à época, muitos considerassem tal adjectivo um exagero bajulatório, por se distanciar da imagem do “Poderoso” Comandante-em-Chefe, Titular do Poder Executivo e Presidente da República que nos chegavam por via da imprensa. Mas os gestos confirmam a substância.
Quando um colaborador perdia um familiar próximo, o Presidente fazia questão de expressar condolências pessoalmente. Não raras vezes, saía do conforto dos seus aposentos para comparecer em velórios.
Voltando ao seu método de trabalho, era exigente. Apesar de ter uma agenda bastante apertada, reservava tempo para ler os documentos elaborados pelos técnicos e assessores, fazia comentários e notas de correcções, quando necessário. Não delegava cegamente.
Reunia frequentemente com as equipas de trabalho que tinham a responsabilidade de acompanhar programas específicos para avaliação das acções e cobrava com base em metas e resultados.
Essa veia organizacional, talvez herdada dos tempos em que integrou o grupo musical Nzaji ou da prática desportiva, reflectia-se no seu estilo de liderança. Também Maria Luísa Abrantes, noutra autobiografia, partilha a mesma visão de que, ainda assim, tinha um “defeito” ou uma fragilidade política: confiava demais no seu círculo próximo.
Essa lealdade incondicional nem sempre lhe permitia aceder à informação completa e necessária para certas decisões cruciais. E isso, de certa forma, terá comprometido algumas políticas e programas que poderiam ter mudado o curso do país. Hoje, o tempo começa a revelar-nos o homem por detrás do Chefe de Estado.
O tempo, esse remédio que não cura todas as feridas, nos ensina a ver com outros olhos, inclusive, a figura do Presidente José Eduardo dos Santos. Para o benefício das gerações mais jovens e futuras, interessa que mais vozes se juntem a este exercício de memória.
Que os que c om ele trabalharam e s c r e v a m , partilhem e documentem as suas vivências, para que o país conheça, com mais verdade e profundidade, o homem que liderou Angola durante quase quatro décadas.
- Jornalista