Entre as muitas figuras estrangeiras que se cruzaram com a História da luta de libertação de Angola (travada pelo MPLA, FNLA e UNITA), há um nome que sobressai, embora pouco referenciado entre nós. Talvez propositadamente pela forma como posicionou após ter sido contrariado por Agostinho Neto. Trata-se de Ernesto Che Guevara, cuja passa- gem por Angola permanece envolta num silêncio que contrasta com a dimensão do mito que o tornou universal.
Durante as celebrações dos 50 anos da Independência Nacional, várias personalidades de apoio internacional foram apresentadas às novas gerações ao integrarem a Classe Independência, da lista de condecorações. Mas entre elas raramente surgiu o nome do guerrilheiro, nascido argentino e cubano por adopção, que, no auge do seu idealismo, abraçou a causa dos nacionalistas angolanos e declarou apoio ao MPLA numa reunião na sede da II Região Político-Militar, em Cabinda. Aí chegou imbuído do espírito humanista que o moveu a realizar um périplo por diversos países com o propósito de prosseguir com a luta contra o despojo, miséria, injustiça e domínio dos povos colonizados de África, Ásia e da América Latina.
A verdade, porém, é que a sua passagem pela província mais ao norte de Angola tende a ser ofuscada nas obras que narram a sua epopeia africana, por centrarem as suas abordagens no martírio logístico e político que viveu ao juntar-se às forças progressistas contra o colonialismo belga no antigo Congo-Leopoldville, actual Re- pública do Congo.
Che Guevara decidiu comprometer-se com a causa africana em função das informações que recebeu num encontro que manteve com Laurent-Désiré Kabila e Gaston Soumialot, dois lídres congoleses, em Dar es Salaam, capital da República da Tanzânia, em 1964. Concluíra que a luta revolucionária em África ainda não atingira uma “maturidade mínima” e que havia ali trabalho duro a fazer.
Consciente de que os seus dois interlocutores não poderiam voltar de “mãos vazias”, Che garantiu que enviaria militares negros cubanos para reforçar a rebelião, seguro de que teria o beneplácito do seu grande amigo Fidel Castro. Pois, fazia parte do selecto e restrito leque de personalidades eleva- das ao Olimpo dos heróis do povo cubano, fruto das suas múltiplas conquistas à frente da guerrilha.
Um dos exemplos mais emblemáticos, que ficou registado nos anais da história de Cuba, é a forma co- mo frustrou a última possibilidade militar de o então governo do ditador cubano Batista travar o exército revolucionário de tomar a cidade de Santa Clara, actual província de Vila Clara. Como recorda a historiadora Pilar Hurtas, na obra “Ernesto Che Guevara: uma vida em imagens”, a ideia de participar directamente na guerrilha congolesa, não agradou aos seus mais próximos, mas, ainda assim, avançou para o campo de batalha.
Na carta de despedida enviada a Fidel Castro, deixou claro que sentia o dever patriótico de seguir viagem, alegando: “Outras terras do mundo reclamam o empenho das minhas modestas forças. (…) Posso fazer o que te está vedado pela responsabilidade que assumiste à frente de Cuba e chegou a hora de nos separarmos”. Mas o que encontrou no Congo foi um cenário contrário ao que havia sido informado antes, dado que os factos no teatro de operações mudaram abruptamente.
Che Guevara chegou numa fase de forte retrocesso moral e militar da revolução e rapidamente se viu envolvido em divergências profundas com alguns combatentes locais. Passado algum tempo, a combinação de desorganização, conflitos internos e doença debilitou-o a ponto de abandonar o território rumo à Tanzânia, reduzido a 50 quilos, assolado por crises de asma (doença de que padecia desde criança), disenteria e múltiplas enfermidades. Recuperou e avançou para novas frentes, contrariando o apelo de Fidel Castro de que devia regres- sar a Cuba para ajudar na formação de guerrilheiros de movimentos de luta contra a opressão colonial.
Mas carregava consigo o ressentimento particular de ter sido frontalmente contrariado por Agostinho Neto. Apesar de partilharem uma vocação comum, a medicina, e a visão humanista que a sustentava, o encontro entre Che Guevara e Agostinho Neto foi tudo menos pacífico.
Num momento de grave crise na II Região Político-Militar do MPLA, Che ousou ditar prioridades da revolução africana, tentando fazer vincar a ideia de que se devia dar primazia às restantes colónias portuguesas, depois Na- míbia, Zimbabwe, África do Sul e só no fim Angola.
Para Agostinho Neto, aquilo era inaceitável. Segundo a obra “Memórias de Jenny: a noiva do vestido azul”, de Artur Queiroz, Maria Eugénia Neto relata que o líder do MPLA dispensou imediatamente os serviços dos cubanos, seguiu em frente e teve de lidar com as consequên- cias. “Esta desavença com Che custou caro a Agostinho Neto. Os cubanos reagiram com frieza e o Che, durante alguns anos, denegriu a imagem do MPLA”, confes- sa. Os líderes deste movimento pas- saram a receber também “san- ções” de Moscovo.
Sensível à in- fluência cubana, Neto e outros di- rigentes do MPLA passaram a ser recebidos por funcionários menores do Kremlin. “Os altos dirigentes soviéticos portavam-se co- mo deuses face aos pobres mortais do MPLA”, recorda Maria Eugénia Neto. Ainda assim, Agostinho Neto manteve a compostura, geriu a situação sem se queixar ou acusar quem quer que fosse.
“Quando as coisas não lhe corriam bem, fingia que não percebia que estava a ser torpedeado pelos países amigos e pelos partidos irmãos”, conta a viúva, descrevendo a serenidade com que o líder viveu aqueles anos de tensão diplomática. Passados 58 anos desde a morte de Che Guevara, o guerrilheiro que carregou consigo a crença de que valia qualquer sacrifício, incluindo o da própria vida se necessário, continua a ser símbolo global de rebeldia e de solidariedade.
As- sim, este argentino que se tornou universal (ao lado do Papa Francisco) mantém viva a mística que alimenta a juventude de diversos cantos do mundo. Ao caminhar por qualquer cidade do mundo, incluindo as de Angola, é comum ver jovens trajados de camisolas estampadas com o seu rosto e as boinas com a estre- la vermelha. O seu rosto pintando em murros representa a força de movimentos contestatários.
A história, porém, é feita também dos seus interstícios: das tensões políticas, das feridas silenciosas e das decisões que moldaram des- tinos nacionais. A verdade é que entre Angola e Cuba, entre Neto e Guevara, houve cumplicidade, houve fratura e houve um preço a pagar. Um preço que a memória oficial presumivelmente preferiu omitir.









