Lá estava ele. O tal do Português. De terno, gravata e sotaque importado de Lisboa, sentado na última carteira da sala. Olhava para os alunos da zona periurbana como quem encara um prato exótico: curioso, mas cheio de nojo.
Tinha postura de rei destronado, que ainda acredita que manda, mesmo quando já foi deposto há décadas. O professor, coitado, tentava apresentá-lo à turma como se fosse uma celebridade: “Este é o Português correcto, aquele que vocês devem usar sempre!” – e aí vinha o desfile: próclises, ênclises, sintaxes impecáveis e concordâncias como a de um padre na catequese.
O Português padrão desfilava como um manequim em passarela, olhando de cima para os mortais, os falantes comuns, os “desviantes”, como diria algum doutor com diploma pendurado na parede. Mas o povo do bairro… ah, o povo do bairro! Eles tinham outra língua, uma que pulava cercas, atravessava valas, subia morros e ainda dava cambalhotas no ar. Era um Português malandro, que fazia ginga como quem sabe que vive na base da improvisação.
Um Português que dizia “sorta, caminha xarxixa” com a mesma elegância com que Camões declamava seus sonetos — se Camões tivesse crescido entre casas de chapa e poeira vermelha. A sala de aula virou palco de um duelo épico: de um lado, o Português padrão, que se achava a última bolacha do pacote (embora todos saibam que a última sempre vem aos pedaços); do outro, o Português da rua, com suas gírias, cortes e arranjos que a gramática nunca imaginou.
A cada frase trocada, um choque de mundos. Foi quando a Maria levantou a mão e soltou: “Professor, mas se eu falo assim em casa, no mercado, com os amigos… por que tenho que mudar só aqui?” Silêncio. O tipo de silêncio que pesa. O Português padrão tossiu.
Tossiu como quem engole um sapo e ainda faz pose. O professor suou como quem enfrenta um júri popular sem advogado. Afinal, como explicar que a língua viva apanha da língua morta dentro da escola? Foi então que João, o palhaço da turma, decidiu filosofar: “Esse Português aí, professor, parece aquele vizinho que só aparece no Natal, se mete em tudo e ainda quer dar ordens.” Riram.
Até o tecto parecia balançar. O próprio Português padrão ficou vermelho – ou talvez fosse só o reflexo do sol nas suas bochechas aristocráticas. Porque, sejamos sinceros, o Português da escola tem mania de grandeza. Acha que porque veio de Coimbra e conviveu com reis, merece reverência.
Anda com dicionário embaixo do braço como quem carrega uma espada. Ignora quem conjuga verbo errado e tem pavor de neologismo. Já o outro, o da rua, vive no improviso, nas entrelinhas, nas quebras de regra com um charme que nem Fernando Pessoa ousaria criticar.
Mas a escola insiste. Insiste em colocar o Português padrão num pedestal, como se ele fosse uma estátua intocável – mesmo que ninguém consiga conversar com ele por mais de cinco minutos sem bocejar.
E quando alguém tenta apresentar o Português do bairro, com suas cores, ritmos e sabores, ouve logo um “isso está errado”. Errado por quê? Porque não está no livro? Porque não foi abençoado pela gramática normativa que parece escrita por fantasmas de outro século? A ironia é que, lá fora, no mundo real, o Português do bairro faz sucesso.
É ele que canta nas músicas, que aparece nos memes, que emociona nas novelas e que manda mensagem de voz no WhatsApp. É ele que vive. O outro apenas sobrevive, alimentado por gramáticos solitários, burocratas e concursos públicos.
É claro, vamos ser justos: o Português padrão tem seu valor. Ele é como aquela roupa formal que a gente usa em casamento e entrevista de emprego. Elegante, sim, mas desconfortável.
Saber usá-lo é necessário – ele abre portas, escreve currículos, assina contratos. Mas obrigar todo mundo a falar assim o tempo inteiro é como exigir que se use sapato de verniz para jogar futebol no campo de terra. Falta é respeito.
Respeito pelo jeito de falar do povo, pelas expressões que brotam do chão, pelos sotaques que carregam gerações. Falta entender que o Português não é um só. Ele é multidão.
É mar, é barro, é asfalto rachado. É aquilo que escapa da língua quando o coração fala primeiro. E que fique claro: o Português do bairro não está pedindo permissão. Ele está ocupando os espaços que lhe negaram.
Está escrevendo poesia no muro, criando novas regras na boca da juventude, fazendo humor e resistência com uma gíria só. Ele não mora nos livros porque os livros sempre fecharam a porta. Mas ele encontrou casa nas ruas, nas músicas, nas redes, nos corpos.
No fim da aula, o Português padrão levantou-se, ajeitou o colarinho, e saiu da sala cabisbaixo. Pela primeira vez, parecia pensar: talvez eu precise mesmo aprender com esses meninos. Porque, no fundo, a língua que não ouve acaba surda.
E o povo do bairro, esse, já sabia: eles não falam errado. Falam do jeito que vivem. E viver, ah… viver também é um jeito de falar. E talvez, só talvez, seja o mais verdadeiro de todos.
Por: ANDRÉ CURIGIQUILA
*Professor