Existe uma ironia persistente na vida social: aqueles que acumulam diplomas e recorrem a uma «linguagem erudita» falham, muitas vezes, exactamente naquilo que se espera do saber — comunicar de forma clara e acessível. O tema “O Letrado que Não Sabe Ler” não se limita a um jogo de palavras; trata-se de uma falha comunicativa com raízes sociolinguísticas, pedagógicas e políticas.
Neste ensaio, analisase a tensão entre a linguagem académica e a linguagem pública, demonstrando por que razão a capacidade de tornar uma ideia compreensível pode revelar mais literacia social do que o uso ostentatório de jargão. A primeira noção a considerar é a dos códigos linguísticos e o seu vínculo com a classe social.
Basil Bernstein distinguiu o elaborated code do restricted code: o primeiro tende a explicitar relações e pressupostos, enquanto o segundo apoia-se em significados partilhados dentro de um grupo. O uso excessivo de um “código elaborado” em contextos nos quais os interlocutores partilham pouco desse mesmo sistema torna a comunicação ineficaz — não por falta de competência técnica do emissor, mas por inadequação ao contexto comunicativo.
É esta inadequação que permite designar como “iletrado” um letrado que não se faz entender. Pierre Bourdieu fornece outra chave de leitura: o conceito de capital linguístico e de poder simbólico. Para Bourdieu, certas formas de linguagem funcionam como instrumentos de distinção social; dominar o “discurso erudito” confere prestígio, mas também pode legitimar a exclusão.
O “letrado que não sabe ler” é, sob este prisma, alguém que mobiliza o capital linguístico para marcar diferença social e não para facilitar a circulação de sentidos. A consequência é paradoxal: quanto mais sofisticada a linguagem de uma elite, maior a probabilidade de uma distância comunicativa que empobrece a vida pública. Do ponto de vista da competência comunicativa, Dell Hymes recorda que a competência linguística é inseparável da competência social — saber falar correctamente não é suficiente; importa saber quando, onde e com quem.
A verdadeira literacia inclui a capacidade de ajustar registos, de seleccionar vocabulário e estruturas discursivas adequadas ao destinatário. Assim, um «iletrado» no sentido pejorativo pode ser, na prática, mais letrado: consegue transmitir a sua mensagem, produzir entendimento e mobilizar acção, enquanto o erudito se perde em perífrases que não chegam ao público.
Em termos práticos e aplicáveis à governação e à educação, o movimento do plain language (linguagem clara) demonstra os benefícios concretos de priorizar a compreensão. Instituições públicas, como agências governamentais nos Estados Unidos, e guias internacionais defendem que a informação pública seja redigida de forma a ser compreendida à primeira leitura — uma exigência ética e funcional que reduz erros, aumenta a participação cívica e protege direitos.
A adopção de práticas de linguagem clara não nega o rigor; exige, isso sim, domínio suficiente do assunto para o traduzir em termos acessíveis. No contexto angolano, onde programas de alfabetização e iniciativas de literacia funcional coexistem com uma elite letrada, as implicações são evidentes: a linguagem pública e académica que ignora as práticas discursivas locais e as necessidades comunicativas da maioria fragiliza a democracia e a inclusão social.
Relatórios e programas da UNESCO sublinham a importância de ligar formação, literacia e participação comunitária — isto é, de não confundir posse de certificados com eficácia comunicativa. A alfabetização real passa também por confiar em formas de expressão que aproximem, não que afastem.
Concluindo, a ideia de que existem “letrados” que são, no fundo, analfabetos de uma literacia social, chama a atenção para uma responsabilidade ética do saber: o conhecimento que não circula não cumpre a sua função social.
A proposta linguística e política que se sugere é dupla: por um lado, integrar nos currículos a formação em registos e comunicação pública (competência comunicativa, design de mensagem); por outro, promover práticas institucionais de linguagem clara que tornem a informação pública inteligível sem perder rigor. Só assim o saber se transforma em instrumento de inclusão e dignidade — evitando que o «letrado que não sabe ler» continue a existir como problema e contradição social.
Por: FernandoChilumbo
O Jornalista em Progresso









