Na segunda-feira, os jornalistas angolanos dos órgãos públicos vão suspender as suas actividades. Não por desleixo da profissão, mas como forma de protesto contra a morosidade na resolução da questão do aumento salarial. Se a paralisação se efectivar, os próximos dias poderão ser de escuridão para a sociedade, que é a principal beneficiária do trabalho jornalístico. Escuridão porque aqueles que têm a missão de informar com rigor sobre os factos do dia-a-dia estarão, em vez disso, empunhando cartazes para manifestar o seu descontentamento.
A ousadia dos profissionais, reunidos em assembleia do Sindicato dos Jornalistas Angolanos (SJA), decidirem cruzar os braços, é mais do que uma reivindicação laboral: é um acto de cidadania que certamente terá impacto na vida de todos os que deles dependem para estarem bem informados. A coincidência desta greve com as celebrações dos 50 Anos de Independência obriga-nos a reflectir sobre o olhar que as autoridades governamentais lançam a uma classe que já prestava contributos valiosos à causa nacionalista antes mesmo do nascimento de Angola como Estado.
Pode parecer estranho, mas o jornalismo esteve ao serviço da resistência conduzida pelos guerrilheiros, nos momentos mais duros da luta, quando ser livre do jugo colonial era a principal missão.
Os sacrifícios consentidos não se esgotaram com a proclamação da independência, foram sendo herdados de geração em geração. O grito de alegria que ecoou na reunião em que Pedro Miguel, secretário-geral do SJA, anunciou a greve, trouxe à memória esse tempo em que “éramos todos iguais e diferentes”.
Iguais no sonho de uma Angola livre e independente; diferentes porque cada um contribuiu como podia: alguns na frente de combate, outros na música, na literatura e no jornalismo, outros ainda na política.
O exemplo de António Matumona ilustra bem essa travessia. Foi chefe de redação do finado diário “Le Courrier d’Afrique” e mais tarde tornou-se secretário de Estado para os Negócios Estrangeiros no Governo de Resistência de Angola no Exílio (GRAE), também chamado Governo Revolucionário de Angola no Exílio, adjunto de Jonas Savimbi, então ministro desta pasta pela FNLA.
A sua trajectória, narrada por Siona Casimiro na obra “Maquis e Arredores”, mostra como o jornalismo serviu de ponte para a política. Matumona, formado em Ciências Políticas, Económicas e Criminologia na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, começou a escrever em 1960, com apenas 22 anos. Aos 24, ascendeu a director da informação deste jornal, o que apontamos aqui, a título de exemplo, como um dos factos notáveis do seu brilhante percurso.
As pessoas que com ele partilharam a banca o consideram como tendo sido decano do jornalismo angolano de grande audiência e da afoita identidade profissional, na época. No entanto, face às vicissitudes da vida, este “ilustre desconhecido” morreu em 1999, em Bavuku, no recato a que foi empurrado pelas circunstâncias. De Siona Casimiro ficamos a conhecer também outro nome de referência: Massaki, considerado o “pai do jornalismo angolano na emigração no Congo”.
Começou em 1956, na publicação Envol, cinco anos antes do início oficial da luta armada. Nascido em 1923, em Maquela do Zombo, emigrou para Matadi (República Democrática do Congo) aos 21 anos, em companhia de um parente, depois de ter perdido os pais. Em Léopoldville, aprendeu o ofício de informar (na tarimba) e lançou a revista Sikama (que significa Despertai), em 1958.
Uma publicação que influenciou o despontar do nacionalismo pró-independência. Mais tarde, a sua devoção ao cristianismo serviu de mote para a criação da revista Moyo (denominação em língua kikongo, que em português significa alma), de carácter antropológico e muito consumida pela comunidade cristã evangélica exilada. E, por outro lado, servia de canal para informar ao mundo o tormento que passavam.
Depois de anos de serviço pelo jornalismo, Massaki enveredou pela política e foi presidente do PDA, tornando-se um dos fundadores da FNLA ao lado de Holden Roberto, Eduardo Pinnock e Jonas Savimbi. Isso por ter orientado formalmente o seu vice-presidente, Emanuel Nkuzika, que fosse assinar o acordo de fusão do PDA com a UPA, o que originou na criação da FNLA e do GRAE. Os últimos anos da sua vida foram, porém, de sofrimento. Morreu em 2013, aos 90 anos, em Viana, em condições sociais que não honram a memória de quem deu tanto ao país.
Outro exemplo de dedicação à causa independentista é o de Luvumbu Sam Afonso, conhecido das lides jornalísticas e não só, como Sam Luval. Natural da Damba, ingressou no jornalismo em 1964 e dedicou 45 anos à profissão. Após a independência, serviu também à diplomacia, em Kinshasa, onde faleceu em 2011, ainda ligado ao jornalismo como freelancer.
O destino destes três homens (Matumona, Massaki e Sam Luval) é revelador daquilo a que os jornalistas estão sujeitos no final da sua carreira. Todos deram contributos decisivos à Pátria, todos ajudaram a moldar a consciência nacional e todos terminaram a vida em condições sociais que não reflectiam o valor do seu trabalho.
Essas histórias, que deveriam ser motivo de orgulho e memória, são também um aviso, por mostrarem que o jornalismo angolano, tanto ontem como hoje, continua a ser indispensável para o país, mas pouco reconhecido pelas estruturas que dele dependem. Daí ser justamente esse paralelo que se impõe hoje. O protesto dos jornalistas, no presente, ecoa as lutas do passado e alerta para o futuro.
Se nada for feito para reverter a actual situação, as gerações de amanhã podem repetir o mesmo destino: contribuir de forma inestimável para Angola, mas terminar esquecidos e desamparados.
Ao escutarmos, nestes dias, o entusiasmo de um grupo de estudantes finalistas dos cursos de Língua Portuguesa e Comunicação, na Universidade Metodista de Angola, e de Jornalismo, na Universidade Metropolitana (com quem partilhámos reflexões sobre o exercício desta nobre missão), tornou-se ainda mais evidente o peso da greve.
Para eles, ela é também um lembrete dirigido aos titulares dos três poderes, de que os jornalistas angolanos foram, são e continuam a ser protagonistas da história, mesmo quando a própria história insiste em relegá-los ao esquecimento.
Por isso, a greve que se aproxima não é apenas por salários. É também por dignidade. É um grito que vem de longe, atravessa a história e reclama, neste tempo de celebração dos 50 Anos de Independência, que o jornalismo seja finalmente reconhecido não como ofício menor, mas como pilar desta Nação.
É a continuidade da tradição de jornalistas que ousam reivindicar, em nome próprio e em nome da sociedade, condições dignas para exercer um ofício que há muito deixou de ser apenas profissão para se tornar missão de vida.
Missão que, silenciosamente, é também partilhada pelas esposas, pais e filhos de jornalistas, por serem eles que suportam os sacrifícios diários impostos a quem escolheu viver para informar. NOTA: Fica a incerteza se na próxima semana voltaremos a marcar presença neste espaço, em função da greve.
Jornalista