O mês era Novembro, como daqui a pouco. No rádio tocava Flores, mas antes, ou viam-se relatos, da luta pela vitória e liberdade popu lar. No leito, Kiala deixou-se em balar pela nostálgica canção.
No sono, uma luz estranha que envolveu-o e, de repente, viu-se diante de homens e mulheres que reconheceu dos livros, das histórias e das fotografias. Eram os heróis, não da Marvel, mas da pátria que o viu nascer. Eles falavam entre si, rostos graves, vozes firmes. Um deles, de olhar profundo, levantou-se.
Este não é o país que sonhamos. Lutámos por liberdade, mas hoje o nosso povo vive dividido por muros que sequer consegue enxergar, disse. As armas se calaram, mas os gritos continuam, disse outro de voz trêmula. Kiala quis falar, mas a voz não lhe saía, o peito apertava.
E, antes que a visão se desfizesse, um deles, o de voz trêmula, virou-se para ele: A chama que acendemos não pode se extinguir. A tua geração precisa guardá-la. O sonho quebrou-se. Kiala acor dou suado, o coração batia forte, muito forte.
Do lado de fora, a cidade despertava, com buzinas, gritos e pés no asfalto. A luz da manhã entrava pelas cortinas e, por um instante, Kiala ficou deitado, lembrando-se dos olhares e das palavras que ouviu no sonho.
Era feriado, Kiala chamou os amigos para a sala luxuosa. Uns compareceram, outros, tinham o dia para descansar ou procurar casos que os fizem tirar do bolso o tanto que acumulavam. Na sala, diante dos amigos, Kiala ficou de pé, como quem traz um mandato.
— Hoje eu não vos falo de negócios e tampouco de festas. Falo-vos de sobrevivência. Tive um sonho, e nele nossos heróis voltaram, dis seram que este não é o país que sonharam. Vi um fogo prestes a con sumir tudo, inclusive nossas casas. — Tá maluco, Kila, que conversa é essa? Perguntou Carlos, enquanto outros balançaram a cabeça e erguiam as sobrancelhas em tom de reprovação.
— Os nossos privilégios nos estão a cegar, estamos a ignorar a chama que cresce lá fora. Cedo ou tarde, vai transbordar e será tarde se não agirmos agora, acrescentou Kiala. — Não te estou a entender, afinal o que queres com essa conversa? – perguntou Adão segurando a taça de vinho. — Quero que vocês compreendam que não há felicidade sem princípios de relação humana.
Quero lembrar que ninguém é uma ilha, somos todos parte uns dos outros. Precisamos perceber que a mente só é plena quando há harmonia entre mais mentes, uni das em objetivos comuns. — Kila, eu te ouço.
Mas o que me garante que, se lhes estendermos as mãos eles não nos abandonarão no primeiro vento? – inquiriu Adão. — As pessoas não são tal como pensámos que são, disse outro.
— Kila, meu amigo, deixa-me lembrar-te de uma história por nós conhecida. Quando Che Gue vara foi traído, um soldado perguntou ao pastor que o traiu: “Como você pode trair alguém que lutou por você e pelos seus direitos? O pastor simplesmente respondeu que as lutas Che assustavam meus cordeiros.
— Kiala, não vamos distante, repara como são tratados aqueles que lutam para o bem comum aqui na banda. Muitos são tidos como loucos e quando são encarcerados devido a ousadia, os demais abraçam a amnésia, nada fizem e tudo segue normal excepto a vida da quele ousou pensar pela maioria. Não é? De repente o silêncio tomou conta da sala.
Alguns pousam as taças, o fumo dos charutos rodopiava como se esperasse uma voz para su mir do ar. — Meus amigos, se não mudar mos, seremos culpados do incên dio que virá. Mas se mudarmos, podemos reconstruir o país que os nossos heróis sonharam.
— E se formos traídos como Che? Se formos esquecidos como os que vão à kuzu? — Prefiro ser traído tentando salvar, do que ser lembrado como quem teve tudo e nada fez. — Esse teu sonho é utopia, Kiala.
A máquina é grande, se é que me percebes! — Encarem como quiserem, mas uma coisa é certa, se não nos tornarmos guardiões dos nossos ir mãos, seremos reféns deles, por que esta desigualdade é um incêndio, e fingir que não arde só porque estamos no andar de cima é ingenuidade.
Assim, naquele dia, pela primei ra vez, o grupo começou a refletir sobre a chama. Não por bondade, mas por perceberem que a indiferença tem preço. E a única forma de nos guardarmos a nós, é guar dar o outro.
Por: DITO BENEDITO
Escritor e jornalista









