O título Sexorcismo, poesia para purificação é já, por si, uma chave de leitura que anuncia o universo paradoxal em que Martinho Bangula inscreve a sua escrita, e não é por acaso que o poeta benguelense decide condensar em apenas uma palavra dois campos aparentemente inconciliáveis, o sexo e o exorcismo, o desejo e a purificação, a carne e o espírito, como se desde logo quisesse alertar o leitor para o facto de que a sua poética habita esse espaço de fronteira onde o profano e o sagrado se interpenetram, se confrontam e, em certos momentos, se reconciliam.
Ao falar em sexorcismo, o autor convoca a ideia do sexo não apenas como impulso biológico ou prazer carnal, mas como ritual de catarse, como mecanismo de libertação de forças obscuras e de tensões sociais, individuais e históricas, e, ao falar de purificação, desloca-nos para a esfera da espiritualidade e da redenção, criando um campo semântico de ambiguidades que se prolonga ao longo de toda a obra, onde cada poema é ao mesmo tempo heresia e oração, ferida e cura, queda e possibilidade de renascimento.
Por isso, não surpreende que em Morte o eu poético declare com violência “Mataste-me antes do amanhecer / não haviam no céu pássaros viúvos”, transformando a experiência íntima da traição em metáfora de uma morte espiritual e coletiva. Ao acusar “Matasteme vendeste-te por cinco dinheiros / e pariste esta angústia este misto, tempo/ausência / estímulo/retração / dor/prazer / medo/ sedução”, o poeta revela que a vida se organiza em pares contraditórios, como se não houvesse experiência sem a tensão entre extremos.
O registo de litania, que culmina em “minha poesia minha heresia”, mostra que o poema é ao mesmo tempo confissão e revolta, oração e blasfémia, herança barroca e insubmissão contemporânea.
Essa mesma ousadia reaparece em Sexo das virgens, onde Bangula confronta directamente o discurso religioso. O poema abre com a imagem de um “Deus homem flutuante saga celestial de carnificinas / divina comédia de Dante”, numa clara alusão à tradição literária ocidental, mas de imediato a desloca ao aproximála da violência, da luxúria e da degradação.
Os versos insistem: “sexo e luxo nas maratonas / o tempo se fecha no céu / os querubins cantam no breu”, desfigurando os espaços sagrados e revelandoos como instâncias contaminadas.
A ironia é ainda mais forte quando “o guardador de promessas mudase para o lugar santíssimo / o vaso é quebrado e chagas derramadas / no dia da expiação / pelo sexo sangrento das virgens”, onde a liturgia é substituída pelo ritual da carne e do sangue. Esse gesto aproxima o poeta das reflexões de Georges Bataille, para quem o erotismo é um movimento de transgressão que coloca o ser diante do limite do possível, e de Michel Foucault, que lê a sexualidade como um dispositivo central de poder. Bangula demonstra que o sagrado não é imaculado, mas corpo, desejo e heresia.
O mesmo tom visionário se intensifica em Apocalipse, em que o eu lírico se coloca “na mais completa solidão em assembleia comigo mesmo no cimo de uma montanha” e assiste a um julgamento universal. O céu enfurecido apaga a luz e espalha “pelos quatro cantos do globo as três irmãs, a fome, a peste e a guerra”. Esta tríade bíblica torna-se metáfora da destruição universal, mas também eco da história recente de Angola, marcada pela guerra civil, pela precariedade e pela fome.
O poeta observa que nasce uma “passividade pela irreverência humana”, e esta constatação é tão profética quanto desesperançada: não basta que o apocalipse se anuncie, a humanidade não reage, antes se acomoda ao colapso. Bangula assume aqui a voz de testemunha solitária, ao mesmo tempo profeta e condenado, incapaz de mudar o rumo, mas determinado a denunciá-lo.
Em Se eu fosse uma prostituta, o jogo de inversão atinge o auge. O poema abre com imagens de alegria e milagre: “O céu cantaria de alegria / abraçaria todos os deuses / e encheria a terra de milagres”. O tom quase utópico contrasta com a figura da prostituta, geralmente associada ao pecado, que aqui é redimida e elevada a possível salvadora.
O poeta afirma: “Não estaria um verbo altivo e capaz para chapar teu corpo duro de estudante / e depois pintá-lo com uma cor berrante para mostrar minha fibra de rapaz”. O desejo inscreve-se directamente na geografia benguelense, marcada pelas acácias, árvores-símbolo da cidade e da memória afectiva de gerações.
O corpo da mulher é pintado como metáfora de pertença, e a paisagem torna-se cúmplice do erotismo. O eu lírico lembra ainda que “não teríamos esta bússola feita de búzios / para nos guiarmos pelas avenidas dos prazeres”, unindo símbolos africanos e paisagem urbana.
A acácia, tal como em Ernesto Lara Filho, é aqui signo de identidade, testemunho de que o erotismo de Bangula não é abstrato, mas territorializado, expressão de benguelensidade e de angolanidade. Finalmente, em Beijo roubado, a atmosfera torna-se intimista, mas igualmente marcada pela transgressão. . Assim, ao longo de toda a obra, percebe-se que o sexorcismo não é apenas um jogo de palavras, mas um verdadeiro programa estético e filosófico.
Martinho Bangula propõe que a purificação não se conquista pela negação do corpo, mas pelo mergulho radical nele; que o sagrado não é alcançado pela exclusão do profano, mas pela sua vivência até ao excesso.
Cada poema é um rito paradoxal, onde o erótico e o apocalíptico, o íntimo e o coletivo, o local e o universal se fundem. Sexorcismo, poesia para purificação deve ser lido, portanto, como obra profundamente enraizada em Benguela, mas em diálogo constante com paradigmas literários universais, da herança barroca ao surrealismo, da filosofia existencialista às leituras pósestruturalistas sobre corpo e poder.
A sua força está no paradoxo: ser herético e purificador, erótico e espiritual, benguelense e universal. É nesse lugar de contradição que a poesia de Martinho Bangula se afirma como rito de exorcismo e como possibilidade de redenção.
Por: FERNANDO TCHACUPOMBA