As rugas no rosto, o estatuto de general reformado ou de ex-governante, o título de embaixador aposentado, escondem os caminhos tortuosos percorridos por homens cuja juventude foi consumida pela guerra. Muitos não tiveram o privilégio de envelhecer: tombaram nas matas do interior de Angola, nas cidades em convulsão, ou mesmo nas matas estrangeiras, em Kinshasa ou Brazzaville, onde a luta pela libertação nacional tomou forma.
Há, no entanto, uma geração de angolanos cujo percurso de vida levou-os a ocupar lugares cimeiros na História recente do país. Alguns foram imortalizados em livros e ensaios.
Outros, apesar de feitos igualmente notáveis, permanecem desconhecidos da juventude angolana, nascida em tempos de paz e alheia às agruras do tempo de guerra.
É à luz dessas histórias que se compreende o verdadeiro peso simbólico das condecorações atribuídas por ocasião dos 50 anos da Independência Nacional, a assinalarse no próximo 11 de Novembro.
Deixando de lado as discussões que se levantam sobre o reconhecimento dos três líderes dos movimentos de libertação nacional, signatários do Acordo de Alvor, assinado a 15 de Janeiro de 1975, como objectivo de estabelecer uma transição pacífica para a independência, a lista de agraciados na Classe Independência é, na verdade, um inventário. Sim, um inventário de vidas cheias de episódios dramáticos, de feitos heroicos e de memórias silenciadas pelo tempo.
É também um convite à reflexão: vivemos num tempo raro, em que muitos dos protagonistas dessa epopeia ainda caminham entre nós. Foi nesse espírito que decidimos viajar novamente ao passado, mais precisamente ao ano de 1964, para revisitar o Centro de Instrução Revolucionária (CIR) 4 de Fevereiro, em Dolisie, então Congo Brazzaville. Este centro, onde se alfabetizavam e preparavam militarmente os jovens combatentes do MPLA, marcou a formação de uma geração.
Por ali passaram adolescentes e jovens moldados a “ferro e fogo”. Pois, por falta de alimentação suficiente, faziam apenas duas refeições por dia: a principal era servida por volta das 13 horas e a segunda, o jantar, na maioria das vezes, não passava de sopa de ervilha com um pedacinho de pão. Algo que, para muitos vindos das matas de Angola, onde sobreviviam à base de mandioca, batatadoce e “gonguenha” (farinha com sal, gindungo ou açúcar), ao longo da viagem até à Brazzaville ou Kinshasa, já era um luxo. Entre os que moldaram essa geração estavam nomes como Benigno Vieira Lopes “Ingo” e o comissário político Fernando Brica.
Ingo, que viria a comandar o lendário Esquadrão Kamy na Frente Norte, era então um jovem instrutor. Brica, director do centro, era o arquitecto moral e político daquela juventude em armas. Mas esta crónica não é sobre eles.
É sobre Pedro Benga Lima, conhecido no meio guerrilheiro como Foguetão, de quem pretendemos falar. Natural de Kindambe, no município do Bembe, província do Uíge, nasceu em Janeiro de 1949.
Ainda adolescente, fugiu da violência colonial (por meio da qual testemunhou até onde pode chegar a crueldade humana) e encontrou-se em Dolisie, onde começou a sua iniciação militar.
Mas a fome obrigou a direcção do CIR — 4 de Fevereiro a transferir parte dos instruendos para o CIR Mantsende, após repetidos furtos de mandioca nas lavras vizinhas. Em resposta, os camponeses congoleses ameaçavam fazer justiça pelas próprias mãos.
Foi assim que, com apenas 15 anos, Foguetão passou a integrar o grupo de instruendos que, exercendo a função de “oficial do dia”, ajudava a proteger não só o CIR de Mantsende como também o depósito central de armas da 2.ª Região Político-Militar do MPLA, uma zona estratégica para o apoio logístico à Frente Norte, em Cabinda.
Apesar de não viverem com o povo, os guerrilheiros desta zona passavam constantemente por humilhações. Quando enviados, a pé, ao Congo para buscar mantimentos, numa deslocação que durava 10 horas, os angolanos eram alvos de escárnio por parte dos jovens congoleses, que lhes diziam: “Deixem essa vida. O futuro é sombrio.
Portugal jamais vos dará independência.” Conforme conta Foguetão, na sua autobiografia, muitos desertaram, seduzidos pela vida civil e pelas pequenas vantagens que ela oferecia.
Essa situação teve algum impacto entre os militares, dado que os desertores tornaram-se bons pagantes de bebida e comida, nos encontros informais, e tentavam desincentivar os outros.
Mas Foguetão resistiu. Continuou a lutar e foi destacado na Base Unidade, que estava localizada em Kimongo, no Congo, a cerca de cinco a seis km da fronteira com a província de Cabinda. Uma unidade que era conhecida por formar grandes comandantes como Gomes Spencer “Veneno”, Anselmo Lêvsky e Bola-do-Povo.
A sua primeira missão foi armar uma emboscada na fronteira contra os aviões turbo-hélice (pintados de vermelho nos extremos das asas e da cauda) do exército português que realizavam voos de reconhecimento.
Após passagens por bases estratégicas em Kimongo e na floresta do Maiombe, recebeu formação militar na Coreia do Norte, em minas, armadilhas e táticas de guerrilha.
De regresso ao maqui, liderou o 1.º Pelotão de Guerrilha, e mais tarde uma coluna inteira, entre os anos 1972 e 1973, o que permitiu testemunhar a proclamação das Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA). Em meio a tantas dificuldades, Foguetão fez-se “homem de guerra e de paz”, como tantos outros que passaram pela 2.ª Região Político-Militar, reconhecida como o “berço da guerrilha do MPLA e da revolução em geral”. Em 1974, já chefiava as Operações das FAPLA na 2.ª Região Político-Militar.
Com a proclamação da Independência Nacional, Foguetão não foi relegado ao esquecimento. Em 1977, tornou-se Chefe de EstadoMaior da 4.ª Região Militar (Huambo), depois transferido para a 1.ª Região (Uíge). Entre 1981 e 1986, cursou a prestigiada Academia Mikael Frúnze, na antiga União Soviética, especializando-se em comando e estado-maior.
Após o regresso, foi nomeado 1.º Substituto do Chefe de Estado-Maior das FAPLA. Em 1988, o Presidente José Eduardo dos Santos confiou-lhe a missão de ser o primeiro governador da recém-criada província do Bengo. Cargo que exerceu até 1990.
Três anos depois, regressou às Forças Armadas Angolanas, como Inspector-Geral e, mesmo após tantos feitos, ainda concluiu uma licenciatura em economia com especialização em gestão empresarial. Mas nem todas as batalhas se vencem com disciplina militar. Aos 64 anos, Foguetão enfrentou a última e mais impiedosa das guerras: a contra o tempo e a doença. Viajou até à África do Sul para lutar pela vida.
Perdeu. Partiu a 20 de Março de 2014. A sua biografia (narrada em Percursos Espinhosos), como a de tantos outros, merece ser resgatada da sombra e devolvida ao povo. Porque, ao contrário do que lhe diziam em Brazzaville, aquele futuro sombrio tornou-se num presente glorioso — para ele e para Angola.
Jornalista