Entre as maiores potências europeias que possuíam vastos territórios coloniais em África — nomeadamente Portugal, Bélgica, Inglaterra e França — cada uma desenvolveu métodos próprios de dominação e administração colonial, moldando as relações entre os colonizadores e os povos autóctones. No que diz respeito às políticas coloniais, destacam-se dois grandes modelos: o indirect rule e o direct rule.
● O método do indirect rule, aplicado sobretudo pelo Reino Unido e em parte pela França, consistia em governar as colónias através das elites locais, respeitando (ao menos formalmente) as estruturas culturais e políticas dos povos dominados. Não havia grande interesse em transformar o colonizado num “igual”; o foco era a exploração económica dos recursos e da força de trabalho.
Tal como sustenta Mamdani (1996), esse sistema permitia certa “autenticidade administrada”, mas mantinha o poder central firmemente nas mãos dos colonizadores. Em contraste, o método do direct rule, utilizado pelos impérios coloniais de Portugal e da Bélgica, procurava eliminar as expressões culturais dos povos colonizados, impondo a língua, religião, costumes e valores europeus como superiores.
Este processo ficou conhecido em Angola como política de assimilação, onde o africano era incentivado a “desafricanizar-se” para se tornar “civilizado”. A cultura do colonizado era considerada bárbara, atrasada, e indesejável.
Como Fanon (1952) argumenta, o colonizado é ensinado a odiar a sua própria imagem e a desejar a do colonizador — um fenómeno psíquico de alienação. Foi este modelo que prevaleceu em Angola, impondo uma pressão intensa sobre as manifestações culturais africanas.
Dançar, falar a língua materna ou praticar ritos tradicionais eram frequentemente proibidos ou ridicularizados. Isso levou àquilo que denominamos aqui de “processo do outramento”: o africano deixou de ser ele mesmo (eu bantu) para acolher o “outro”, o europeu, dentro de si. Como diz o próprio termo alius (latim para “outro”), este processo consistiu num despojamento identitário profundo — um afastamento da própria raiz cultural.
A consequência deste outramento foi uma crise identitária aguda na angolanidade — pior, talvez, que qualquer crise económica. O angolano passou a ver-se como “outro”: angolano-brasileiro, angolanoportuguês, angolano-americano, e assim por diante. Este fenómeno, também visível nas sociedades pós-coloniais descritas por Homi Bhabha (1994), reflecte uma hibridez cultural forçada, onde o colonizado vive num “entre-lugar” de identidade.
A crise, porém, não se deve apenas à colonização. Com o advento da globalização e da aldeia global (McLuhan, 1964), os povos passaram a influenciar-se mutuamente em níveis nunca antes vistos. Contudo, em contextos como o angolano, onde já houve uma imposição cultural, a globalização apenas aprofundou a desvalorização do local e do tradicional. Torna-se, assim, urgente redefinir o conceito de angolanidade.
Para tal, propomos uma abordagem identitária que vá do específico para o geral. Antes de ser apenas “angolano”, é preciso reencontrarse na sua etnia: angolano ocimbundu, mukongo, lunda-cokwe e tantas outras. A verdadeira angolanidade nasce do reconhecimento da diversidade interna, e não da sua supressão.
O desprezo pela cultura local é um eco do outramento, e só será vencido com um movimento de resgate. Inspirando-nos em Franklin D. Roosevelt e no seu programa de reconstrução económica — o New Deal —, propomos aqui um Novo Pacto Cultural Angolano.
O nosso New Deal será, sobretudo, linguístico. A revitalização das línguas nacionais deve estar no centro do esforço de reconexão identitária. A África Austral, em especial, é uma região com forte tradição ágrafa (sem escrita), onde a oralidade sempre foi o principal instrumento de transmissão de conhecimento (Ki-Zerbo, 1981). A oralidade carrega em si os costumes, os provérbios, os rituais, as músicas, as danças, a filosofia — ou seja, toda uma cosmovisão africana.
A língua é o corpo vivo da cultura. Sem ela, tudo se fragmenta. Como diria Ngũgĩ wa Thiong’o (1986), “a língua de um povo é o repositório da sua memória colectiva”. O domínio da língua materna permite ao indivíduo reconectar-se com os saberes ancestrais e libertar-se da alienação cultural.
Portanto, o Estado — entendido aqui como povo, governo e instituições — tem o dever de adoptar políticas concretas para valorizar e institucionalizar as línguas nacionais no sistema educativo, nos meios de comunicação e nas políticas públicas.
Esta é a base para reconstruirmos a dignidade cultural angolana. O outramento é um processo subtil e violento de desumanização cultural. O antídoto para essa crise identitária passa por uma acção estratégica centrada nas línguas nacionais.
Cada angolano deve, portanto, reencontrar-se na sua matriz linguística e cultural, pois é aí que reside a chave para a reconstrução moral e cultural de Angola. Que o nosso New Deal seja o regresso à voz da terra.
Por: FERNANDO TCHACUPOMBA