Era uma manhã cinzenta em Luanda – parece que o cacimbo não pretende ir embora – quando me sentei para pensar sobre a China. Não a China das imagens rápidas da televisão, nem a dos relatórios frios do FMI, mas a China que atravessou sete décadas de reinvenção e que, de repente, aparece diante de nós como espelho e como desafio. Olhar para a modernização chinesa é como observar um rio que nasce pequeno, quase imperceptível, e que de repente transforma-se em correnteza imparável, que arrasta consigo tudo o que encontra.
Aos meus olhos, a modernização com características chinesas vai muito além de uma sucessão de números impressionantes, como os mais de 40 mil quilómetros de comboios de alta velocidade ou os dezassete trilhões de dólares de PIB. É, sobretudo, uma lição de tempo longo, de memória transformada em projecto. O “século da humilhação”, as guerras do ópio, os tratados desiguais, nada disso foi esquecido; foi, antes, convertido em combustível para a marcha. Talvez seja por isso que a China fala tanto em rejuvenescimento, não é crescer, é erguer-se depois de ter sido forçada a ajoelhar. Enquanto escrevo estas linhas, não consigo deixar de pensar em Angola e em África. Também nós conhecemos o peso do apagamento, o silêncio forçado dos que disseram que não tínhamos passado.
Mas o passado está aqui, escondido nas pedras do Kongo, nos cânticos Umbundu, nas bibliotecas de Tombuctu. Tal como a China, carregamos feridas e memórias. A diferença é que, enquanto a China soube transformar tradição em futuro, a África ainda luta para não aceitar o rótulo de “tábua rasa”. O que pretendo nesta reflexão não é contar uma história distante, mas ligar margens, a da modernização chinesa, com os seus pilares firmes, a da cooperação China-África e, sobretudo, a de Angola, que se encontra no meio de uma encruzilhada decisiva.
Que tipo de futuro partilhado podemos construir? Continuaremos a repetir dependências, apenas trocando de parceiros, ou ousaremos reinventar a nossa própria modernidade? PRIMEIRA PARTE – OS PILARES DA MODERNIZAÇÃO DA CHINA O caminho da modernização da China, que atravessa já mais de sete décadas, pode ser contado como se conta uma crónica de um povo que se reinventa sem nunca perder de vista a sua alma. São mais que estatísticas ou de políticas económicas, é uma narrativa que se ergue na confluência entre tradição e inovação, memória e futuro, colectividade e aspiração individual.
A China, que em 1949 era ainda um país esmagadoramente agrário, com um PIB per capita que mal alcançava duzentos dólares, ergueu-se até se tornar a segunda maior economia do planeta, que supera a marca dos dezassete trilhões de dólares em 2024. Essa transformação é numérica; mas é, acima de tudo, cultural, política e civilizacional. Mao Zedong lembrava que “o povo chinês ergueu-se de pé”, ao proclamar a República Popular da China em 1949. Essa frase ecoa até hoje como marco de um renascimento. O primeiro fio dessa tapeçaria encontra-se na fusão entre tradição e inovação.
O Ocidente ensinou, ao longo do tempo, que modernidade significa romper com o passado. A China, pelo contrário, mostra que é possível avançar carregando consigo os ensinamentos milenares do confucionismo, do taoísmo e do legalismo. A piedade filial, a harmonia social e o mérito educacional, outrora pilares do exame imperial, hoje são traduzidos em grandes investimentos em educação e ciência.
O sistema de educação superior da China produziu mais de 55 milhões de graduados durante o período do 14º Plano Quinquenal (2021-2025), em áreas como ciências da vida, tecnologia quântica, inteligência artificial, ciência dos materiais e ciência espacial, além de progressos em filosofia, ciências sociais, cultura e artes, onde as universidades da China fizeram avanços originais. Deng Xiaoping, arquiteto das reformas, dizia que “não importa se o gato é preto ou branco, desde que cace ratos”.
Essa máxima exprime o pragmatismo que guia a modernização, uma vez que, a tradição e a inovação não são contraditórias, mas complementares. A segunda marca é o peso da memória colectiva. O “Século da Humilhação”, vivido entre 1839 e 1949, é uma ferida aberta que molda o imaginário e motiva a superação.
A invasão estrangeira, os tratados desiguais e a perda de soberania criaram o consenso de que modernizar-se é também recuperar dignidade e projectar força. Cada conquista tecnológica, seja a rede ferroviária de alta velocidade com mais de 40 mil quilómetros, seja o programa espacial ou a liderança em 5G, é celebrada como avanço económico e como redenção histórica.
O Presidente Xi Jinping retoma este espírito no conceito de “Sonho Chinês” (中国梦), afirmando: “Alcançar o grande rejuvenescimento da nação chinesa é o maior sonho da China moderna”.
A modernização, assim, não é fim em si mesma, mas caminho para restaurar a dignidade de uma civilização. O idioma é outro pilar silencioso dessa marcha. Num país de centenas de dialetos, o mandarim tornou-se mais que uma língua comum, é um veículo de unidade e progresso. Desde a década de 1950, a promoção do Putonghua ajudou a unir o território e a criar condições para a mobilidade social.
Hoje, dominar o mandarim significa ter acesso à escola, ao emprego, ao futuro. A alfabetização, que em 1949 rondava os 20%, chega a mais de 97% em 2020. Jiang Zemin lembrava que “sem unidade, não há força; sem cultura comum, não há futuro”.
O idioma, nesse percurso, é o cimento que fixa a modernização sobre bases sólidas. Outro elemento transformador é a flexibilização gradual do Hukou, que abriu caminho a uma das maiores migrações internas da história.
Centenas de milhões de camponeses tornaram-se trabalhadores urbanos, que redefiniu identidades e sonhos. De 1980 a 2020, a urbanização saltou de 19% para 64%, que criou uma nova paisagem social onde famílias inteiras atravessaram, em apenas duas gerações, a ponte que leva da pobreza ao estatuto de classe média.
Hu Jintao, em seu tempo, reforçava que “o desenvolvimento deve ser centrado nas pessoas, e o progresso deve beneficiar todos”. Por fim, a modernização chinesa é orientada por um materialismo prático, que encontra no conceito de Xiaokang a sua expressão mais clara. Não se trata de acumular consumo vazio, mas de garantir a todos uma “vida boa”, com moradia, transporte, saúde, educação e lazer.
A China erradicou a pobreza extrema em 2021. Em apenas quatro décadas, a China retirou mais de 800 milhões de pessoas da pobreza, que contribuiu com cerca de 70% da redução global da pobreza. Hoje, a China detém o maior sistema de geração de energia limpa do mundo e a maior rede 5G, com mais de 1 bilhão de utilizadores. O Presidente Xi Jinping sublinhou: “Nenhuma civilização pode alcançar rejuvenescimento se deixar o seu povo na pobreza”.
Assim, a modernização chinesa é escrita em múltiplas camadas. É a história de um povo que não apagou o passado, mas o converteu em fonte de energia. É a superação de um problema colectivo que se metamorfoseou em ambição. É a língua que unifica, o sistema que se flexibiliza, a cidade que acolhe o camponês, o Estado que promete e entrega uma vida digna. Mao disse que “uma faísca pode incendiar a pradaria”. Essa faísca foi acesa em 1949, e hoje arde como chama que ilumina não só a China, mas o próprio horizonte da modernidade.
SEGUNDA PARTE – A MODERNIZAÇÃO CHINESA NAS RELAÇÕES CHINA-ÁFRICA E CHINAANGOLA
Era uma vez um rio que não corria sozinho. Vinha das montanhas antigas da Ásia, atravessava desertos de memória, e chegava até ao vasto mar africano. Esse rio chamava-se modernização, mas não era o mesmo rio que os europeus haviam traçado nos seus mapas coloniais. Era um rio feito de lembranças, de tradições e de futuro, e nele navegava a China com a sua própria barca, neste caso, a barca de uma civilização que soube transformar a dor em força e o passado em guia. Durante muito tempo, disseram que a África não tinha águas próprias, que não tinha rios de história.
O pseudo sábio colonial europeu, sentado no conforto de sua biblioteca, escreveu que a África não tinha passado, apenas sombras trazidas por estrangeiros. Mas como pode um continente que ergueu Tombuctu, com as suas bibliotecas de saber, não ter memória? Como pode uma terra que viu reinos como o Mali, o Songhai, o Kongo ou o Grande Zimbabué florescer, ser chamada de vazio? Esse apagamento foi o artifício dos que desejavam dominar.
Chamaramno “descoberta”, mas na verdade foi silenciamento. A China conhece bem esta ferida. Também ela foi partida por tratados injustos, também ela foi atravessada pela mão dura de potências que a quiseram humilhar. Mas a diferença é que não renegou as suas raízes, fez do confucionismo, do taoísmo, da sua própria filosofia, sementes para erguer arranha-céus e fábricas. Assim, mostrou ao mundo que modernizar-se não é cortar a árvore pela raiz, mas fazer crescer novos ramos a partir do tronco ancestral. É essa lição que África precisa beber. Não modernizar-se como cópia, mas como reinvenção.
Não aceitar que a tradição seja um peso morto, mas torná-la força que empurra para frente. Porque o Reino do Kongo, com o seu sistema político e comercial, não foi relíquia, foi escola. Porque o Ubuntu, esse “eu sou porque nós somos”, não é somente filosofia, é programa de governo possível. Porque falar Umbundu, Kimbundu ou Kikongo não é regressar ao passado, mas preparar um futuro com raízes firmes.
A cooperação sino-africana, nesse sentido, tem sido mais que comércio. É uma ponte onde cada pedra tem memória. Quando em 2000 nasceu o Fórum de Cooperação ChinaÁfrica, foi o encontro de histórias que recusam ser marginais. Os projectos que vieram depois não foram somente minas ou estradas, foram hospitais, escolas, universidades, foram sementes lançadas na terra para que a África não fosse apenas exportadora de riquezas, mas construtora de destinos.
A China decidiu conceder o tratamento de tarifa zero a 100% das linhas tarifárias de todos os países africanos com relações diplomáticas. E Angola é um capítulo especial neste percurso.
Depois da longa noite da guerra civil, encontrou na China não um tutor que dita reformas, mas um parceiro que oferece caminhos. Com o petróleo como garantia, ergueram-se pontes, redes eléctricas, linhas de telecomunicação. O Caminho-de-ferro de Benguela, recuperada com apoio da China, é linha de tempo, que ligou a memória das caravanas antigas ao dinamismo das economias regionais. Ela mostra que modernização não é rasgar a terra, mas costurá-la de novo.
Angola conta com a presença de mais de 400 empresas chinesas e um investimento acumulado de 27 mil milhões de dólares, dos quais 5 mil milhões em sectores não petrolíferos, para ilustrar que a modernização com características chinesas ganha tradução concreta na reconstrução nacional. Neste diálogo, há também símbolos que contam histórias invisíveis. Quando um estudante angolano vai estudar em Pequim ou Xangai, leva livros novos, leva também o eco dos antigos mestres de Tombuctu. Quando um hospital se abre em Luanda com ajuda da China, é a prova de que a vida e a dignidade ainda são o centro da política.
Assim, o exemplo chinês brilha não como espelho a ser copiado, mas como farol a ser reinterpretado. Tal como a China teve o seu Xiaokang, a África pode ter o seu “bemviver”, não medido pelo consumo, mas pelo equilíbrio com a terra e a solidariedade entre gerações. Tal como a China fez do mandarim língua de coesão, a África pode fazer das suas línguas pilares de autoestima e unidade.
A modernização africana, e angolana em particular, só triunfará se não aceitar o mito da tábua rasa. Porque a África não precisa de ser “descoberta” outra vez. Ela sempre esteve presente, sempre teve história, sempre foi sujeito. O que precisa é de reinterpretar o seu próprio rio, deixar que corra sem barreiras, encontrar nas suas margens antigas a força para seguir adiante.
E neste caminho, a cooperação com a China não é fim, mas ponte. Uma ponte feita de ferro, mas também de símbolos. Uma ponte que ensina que o futuro pode ser construído sem esquecer o passado. Uma ponte onde Angola, a África e a China se encontram, não como colonizador e colonizado, mas como viajantes de um mesmo rio que corre para o mar do futuro. TERCEIRA PARTE – FUTURO PARTILHADO E COOPERAÇÃO SINCERA ENTRE OS ESTADOS No horizonte das relações internacionais, a modernização com características chinesas ergue-se como experiência nacional e como filosofia de partilha e caminho de futuro.
Enquanto o Ocidente, no pós-Segunda Guerra Mundial, procurou impor ao mundo um único paradigma de desenvolvimento, a China fala a linguagem da diversidade, acolhe as civilizações na sua singularidade e reconhece que cada sociedade pode avançar segundo as suas próprias raízes históricas, culturais e espirituais. Esta proposta não é abstrata, por ter implicações directas para a África e, em particular, para Angola, que se encontra no centro de uma encruzilhada decisiva.
O futuro da cooperação sino-africana apresenta-se diante de nós como um campo fértil, mas também repleto de riscos. As próximas décadas serão determinantes para redesenhar-se a globalização e afirmar o papel do Sul Global, para romper as amarras do passado colonial e projectar uma nova arquitetura internacional. 1. No primeiro cenário, o mais harmonioso e auspicioso, vislumbra-se o caminho da cooperação estratégica sustentada.
A relação entre China, África e Angola ergue-se sobre pilares de respeito mútuo e benefício partilhado, onde a modernização chinesa serve de farol, mas nunca de molde rígido. Neste cenário, Angola consolida-se como nó logístico vital do Atlântico Sul, ligando-se por corredores ferroviários e rodoviários ao coração da África Austral e Central.
Portos de águas profundas, parques industriais e rotas de exportação, erguidos com cooperação chinesa, dão nova vida à sua posição geoestratégica. O petróleo deixa de ser prisão, e com apoio em tecnologia e saber-fazer, o país diversifica-se, agricultura, mineração transformada e indústria leve florescem, enquanto a economia digital abre horizontes inéditos.
Projectos como o Angosat-2 desdobram-se em inteligência artificial, cidades inteligentes e serviços públicos digitais, para modernizar a economia, mas também a administração pública. A educação torna-se ponte duradoura, pois, as universidades angolanas e chinesas criam centros de pesquisa conjuntos, e a circulação de estudantes transforma-se numa verdadeira rede estratégica de formação.
A modernização africana passa a enraizarse no próprio solo africano, que valoriza o Ubuntu e solidariedade comunitária, que rompe a lógica da ocidentalização cega e afirma a africanização da modernidade. 2. Um segundo cenário, porém, desponta como alerta. É a cooperação limitada pela dependência estrutural.
Aqui, embora a relação se mantenha, ela se esgota em projectos de infraestrutura e crédito centrados na exportação de matérias-primas. O endividamento elevado corrói margens de soberania, a transferência tecnológica permanece escassa e os técnicos locais ficam relegados a funções secundárias. A modernização não cria raízes, e Angola corre o risco de repetir o ciclo de dependência, apenas muda o parceiro externo. A cooperação torna-se funcional, mas não transformadora. O impacto, neste caso, é a perpetuação de uma epistemologia colonial que insiste em colocar a África na periferia da história.
3. O terceiro cenário, mais ambicioso e luminoso, é o da cooperação expandida e de um futuro verdadeiramente partilhado. Neste caminho, África e China não apenas cooperam, mas erguem uma arquitetura institucional alternativa de governança global, como já tem se vislumbrado. Novos corredores Sul-Sul escapam ao domínio exclusivo dos mercados ocidentais, para permitir que Angola exporte produtos transformados para a Ásia e importe tecnologia de ponta.
Uma nova epistemologia floresce, onde as universidades africanas e chinesas cooperam na produção de conhecimento crítico, para superar o eurocentrismo e afirmar o passado africano como parte da construção do futuro.
Na segurança, fortalece-se a capacidade regional, com Angola a assumir, efectivamente, o papel de liderança na África Austral. Na sustentabilidade, a lição chinesa de buscar harmonia entre ser humano e natureza guia projectos conjuntos em energias renováveis, biodiversidade e gestão hídrica. O impacto é um novo multipolarismo, onde a diversidade cultural deixa de ser vista como obstáculo e passa a ser reconhecida como riqueza, e a modernização converte-se em mosaico de caminhos, e não numa via única imposta de fora.
Assim, no horizonte das próximas duas décadas, a cooperação sinoafricana não será uma mera opção econômica, mas um destino civilizacional. A África, e Angola em particular, enfrentam a escolha decisiva entre duas vias: imitar modelos externos, que perpetuam a dependência, ou reinventar-se a partir de si mesmas, inspiradas pela experiência chinesa, mas guiadas pelas suas próprias tradições.
Se seguirem a segunda via, poderão transformar a modernização num processo de emancipação cultural, social e econômica, inserindo-se num mundo multipolar que valoriza a diversidade como riqueza. Se seguirem a primeira, permanecerão presas às sombras da epistemologia colonial, ainda que com novos rostos na cena internacional.
Nesta senda, vale destacar a Iniciativa para o Desenvolvimento Global da China que já mobilizou 23 mil milhões de dólares em apenas quatro anos, para apoiar mais de 1.800 projetos em países do Sul Global, um dado que mostra como a modernização chinesa projectase como futuro partilhado.
O futuro partilhado e a cooperação sincera dependem, em última instância, não somente da China, mas da capacidade africana de afirmar o seu passado como força viva, projectando-o em direção ao futuro.
Por: Edmundo Gunza









