É quase convencionado, na teoria e crítica literária, na esteira de Dante Alighieri, que existem sobretudo quatro possibilidades através das quais se podem interpretar uma obra literária: a primeira possibilidade é a literal-artística, que se reduz ao entendimento da estória na letra da palavra; a segunda é a interpretação sócio-política, que se resume na representação de uma obra no momento em que ela foi escrita, do ponto de vista social e político; a terceira possibilidade preconizada por Dante é o significado filosófico; há um quarto sentido a que Dante chamou esotérico, que é senão o significado oculto da obra.
Há de haver, em cada escritor, um pouco de tudo. Mas há em cada escritor, sobretudo, um pouco ou muito mais de cada uma daquelas possibilidades nas suas obras, segundo as suas motivações e convicções pessoais. Estas vias de interpretação são faróis que nos permitem entender o sentido e alcance de uma obra através de um transe que se realiza com o seu autor situado no seu tempo e o modo como reflete o mesmo.
O caso de Luandino não nos é estranho: tendo crescido em uma Angola de nítida separação entre portugueses e angolanos, entremeados por uma categoria de assimilados, onde havia considerável distância entre a cidade e os bairros de areia, é uma literatura sócio-política. Na sua época, a Luanda dos Musseques é sobretudo analfabeta, falante do kimbundu, com os bairros de areia separados do asfalto. Disto nascem os livros de Luandino, que incorporou a obra até no próprio nome, cuja justificação está na primeira frase do livro Nosso Musseque: “alcunha, quando a gente tem, tem por alguma razão”.
E a razão de Luandino é clara: é um gesto de auto-determinação, de assunção como parte do movimento de libertação, um gesto, sobretudo, de identificação com a terra que o acolheu desde os 3 anos: Luanda. Luandino é o primeiro personagem dos seus livros. Mas a sua literatura não é um mero espelho, no sentido de Stendhal. É uma denúncia contra as vicissitudes da vida, do colonialismo e das assimetrias sociais. Luandino, no entanto, vai mais além.
Escreve em português, mas não no português da cidade, dos escolarizados, escreve no português que soa a kimbundu, de quem fala sem nenhum compromisso com a língua mas, no entanto, molda-a segundo a sua imagem e semelhança. É, noutros termos, a literatura viva e vivida.
Escrever personagens já é em si um acto de solidariedade do escritor para com as pessoas. Escrever como os personagens, aproximar-se deles, não separar quem somos de quem nós escrevemos, é levar essa solidariedade ao extremo. E isto fá-lo bem Luandino. Por isso não escreve no português culto, mas antes surrado pelo kimbundu, à sua maneira. E, no fim, quando se pretende saber a razão de tanta angústia, dor, sofrimento, a resposta está na própria obra.
A literatura cumpre assim o seu papel de pertencer ao seu tempo, de servir como material histórico-sociológico, não como os materiais de história, que retratam os factos com precisão e datas, mas como materiais que retratam o espírito de um tempo através de alegorias e símbolos.
Na interpretação dos tempos, o juízo literário, isto é, dos grandes literatos, não é menos valioso que o dos historiadores. Visto que um romancista possui recursos ilimitados, podendo inferir do que aconteceu o que poderia ter acontecido. O historiador só pode dizer o que efectivamente aconteceu.
Não houve um Xoxondo e uma Carmindinha e, portanto, o historiador não o pode descrever. Mas houve vários Xoxondo e Carmindinha e, portanto, o literato o pode descrever, como um ideal, uma representação, que existiu, não se sabe ao certo com quem, quando e como, mas existiu.
E disto resulta o carácter histórico-sociológico da literatura de Luandino e, de modo mais abrangente, de toda a literatura de combate: de Viriato da Cruz à Pepetela. Nosso Musseque é, então, esse quadro, de memória e espírito colectivo, que o colonialismo criou, que as pessoas criaram à sua volta e que sobreviveu de outras formas. Zeca Buneu e os Outros são as crianças de toda a Luanda colonial: com brincadeiras que lhes são próprias, inventadas à sua maneira.
As crianças parecem ter esse poder de recriação, que falta aos adultos. Nunca se reclamam da falta de um brinquedo de fábrica. Antes, arranjam sempre maneira de reinventar com o que tem, ou com o que aparece, uma lata, um plástico, uma árvore, capins, enfim. Tudo serve como instrumento para confecionar o mundo.
A Literatura de Luandino não é, porém, triste. É alegre. No musseque não tem as melhores condições de vida, não tem saúde, educação e saneamento. Mas há pessoas, e onde houver pessoas arranja-se sempre uma forma de se ser feliz, um subterfúgio à realidade, pelo amor dos homens.
Assim é que há sempre um casal apaixonado, crianças indo e vindo, brincando toda sorte de brincadeiras, um velho que se entretém lendo um jornal com o charuto entre os lábios, e um casal de senhores que aproveita as pequenas alegrias da vida doméstica. Afinal, não é preciso muito para se ser feliz, basta que se tenha vontade e ambições controladas. Há sempre, no dizer do poeta, um jeito alegre de chorar.
Em Luandino a Literatura, história e sociologia são realidades que não raras vezes se cruzam. E assim é porque a Literatura, sendo imagética, tem como pano de fundo a realidade, os factos. Por isso que a literatura de Luandino é a Literatura de uma época: da época dos Musseques. De todos os musseques do mundo. Com nomes e idiossincrasias diversas, mas realidades análogas. “Nosso Musseque” é o Musseque de todos os cantos do mundo.
Por: ISMAEL CHIPULULO









