Oestigma associado ao VIH/SIDA continua a ser uma das maiores barreiras para a prevenção, diagnóstico, tratamento e bem-estar psicológico das pessoas vivendo com VIH. Embora os avanços biomédicos, como a terapia antirretroviral e o conceito “Indetetável = Intransmissível (I = I)”, tenham transformado o VIH em uma condição crónica controlável, o preconceito ainda produz sofrimento emocional profundo.
Na Psicologia, o estigma é entendido como um processo social que atribui marcas negativas a indivíduos ou grupos, afectando seu valor social percebido e contribuindo para exclusão, vergonha e discriminação. Este texto discute, da perspectiva psicológica, como o estigma relacionado ao VIH/SIDA impacta três dimensões fundamentais do bemestar humano: a autoestima, as relações sociais e a qualidade de vida.
1.O estigma do VIH/SIDA: fundamentos psicológicos
Do ponto de vista psicológico, o estigma pode ser dividido em três componentes:
Estigma social
É o preconceito mantido pelo colectivo, expresso em atitudes discriminatórias, discursos moralistas, exclusão e julgamentos. Historicamente, o VIH foi associado à promiscuidade, marginalidade ou “culpa moral”, criando imagens negativas que persistem até hoje. Esse estigma social reforça mecanismos de vigilância e punição simbólica sobre aqueles que vivem com VIH.
Estigma percebido
Refere-se ao medo que a pessoa tem de ser rejeitada, discriminada ou julgada, mesmo quando nenhuma experiência concreta ocorreu. O indivíduo internaliza as expectativas negativas da sociedade e passa a anticipar rejeição. A Psicologia compreende esse fenômeno como um mecanismo que aumenta ansiedade, vigilância social e sensação de perigo interpessoal.
Estigma internalizado (auto-estigma) Ocorre quando a pessoa vivendo com VIH incorpora as mensagens negativas socialmente difundidas, passando a acreditar que vale menos, que é inferior, perigosa ou indigna de amor. É uma forma de violência psicológica internalizada, que prejudica profundamente a identidade e o autoconceito. Esses três tipos de estigma interagem entre si e reorganizam a vida emocional e social da pessoa, afectando auto-estima, relacionamentos e práticas de autocuidado.
2. Impacto do estigma na auto-estima
A auto-estima é o conjunto de percepções, afectos e julgamentos que uma pessoa tem sobre si mesma. Ela é construída nas interações sociais e depende do sentimento de pertencimento, competência e valor pessoal. O estigma relacionado ao VIH/SIDA pode afectar a auto-estima de várias formas:
Internalização de narrativas negativas
Pessoas vivendo com VIH muitas vezes absorvem mensagens sociais pejorativas e passam a acreditar que são “sujas”, “perigosas” ou “erradas”. Essa internalização gera autocrítica severa, vergonha tóxica e sensação de inutilidade. O auto-estigma reduz a auto-eficácia e pode comprometer a motivação para o autocuidado.
Culpa e vergonha
A Psicologia diferencia culpa (ligada a acções) de vergonha (ligada à identidade). Muitas pessoas com VIH sentem culpa pelo modo como adquiriram o vírus, mas é a vergonha “sou defeituoso”, “não mereço amor”, que causa maiores danos. A vergonha reduz a capacidade de pedir ajuda e de se conectar emocionalmente com outros. Medo constante da descoberta O receio de que o diagnóstico se torne público gera hipervigilância, ansiedade e sensação de fragilidade. A auto-estima é abalada quando o indivíduo sente que sua identidade está ameaçada por algo que deve ser escondido.
3.Impacto sobre a identidade
Para alguns, o diagnóstico se torna uma marca central da identidade, obscurecendo habilidades, valores e projetos. A pessoa se vê primeiro como “soropositivo” antes de se enxergar como indivíduo completo, comprometendo o desenvolvimento de uma identidade saudável.
4. Impactos do estigma nas relações sociais
O ser humano é, por natureza, um ser relacional. As relações sociais oferecem apoio, afecto, senso de pertencimento e oportunidades de troca emocional. O estigma do VIH/SIDA interfere profundamente nesses vínculos. Isolamento social e retraimento A antecipação de rejeição leva muitas pessoas a isolarem-se para se proteger. O isolamento, no entanto, intensifica sentimentos de solidão, depressão e desesperança. A falta de convivência social reduz estratégias de coping e diminui oportunidades de apoio emocional.
Medo de rejeição afectivo-sexual Vincular-se afectivamente pode gerar medo: “e se a pessoa se afastar ao saber?” Esse medo pode levar a: • evitar relacionamentos amorosos; • esconder informações importantes; • aceitar relações abusivas por acreditar não merecer algo melhor;
• interromper relações significativas por medo da revelação. Esse impacto é maior quando falta informação sobre I = I, levando pessoas a acreditarem que representam perigo permanente aos outros.
Dificuldade de revelação (disclosure)
A decisão de contar o diagnóstico é complexa. Psicologicamente, envolve análise de risco-benefício, auto-aceitação e confiança. O medo de revelar pode gerar tensão constante nos relacionamentos familiares, de amizade e profissionais. Rutura de vínculos familiares Alguns indivíduos relatam afastamento, julgamentos ou atitudes de superproteção da família. Essas mudanças nos laços familiares podem causar sentimentos de perda e desvalorização.
Estigma estrutural no trabalho e na escola Experiências de discriminação institucional, como perda de emprego, violação da confidencialidade ou comentários estigmatizantes, minam o senso de pertencimento e segurança social. Esse tipo de discriminação tem efeitos cumulativos sobre a saúde mental.
5. Impacto do estigma na qualidade de vida
A qualidade de vida envolve dimensões físicas, emocionais, sociais e existenciais. O estigma do VIH pode comprometer cada uma delas.
Saúde mental prejudicada
Estudos mostram maior prevalência de ansiedade, depressão, transtorno de estresse pós-traumático e abuso de substâncias entre pessoas vivendo com HIV, especialmente quando enfrentam estigma intenso. O sofrimento psicológico afecta o sono, apetite, funcionamento cognitivo e motivação.
Baixa adesão ao tratamento
O estigma pode levar a: • evitar buscar serviços de saúde por medo de ser reconhecido; • esconder a medicação; • interromper antirretrovirais por vergonha ou depressão. Essa baixa adesão afecta a saúde física e aumenta riscos de complicações. Dificuldades laborais e financeiras Preconceito no emprego ou auto-exclusão por medo de exposição podem limitar oportunidades profissionais. De modo indireto, isso reduz autonomia, estabilidade financeira e satisfação com a vida.
Redução de projectos de vida
Alguns indivíduos acreditam que o diagnóstico inviabiliza sonhos, como constituir família, ter filhos, viajar ou estudar. Essa limitação auto-imposta, alimentada pelo estigma social, reduz o bem-estar existencial. Diminuição da vitalidade emocional A constante necessidade de esconder informações, lidar com medo e enfrentar preconceito consome energia emocional e reduz motivação para actividades prazerosas, afectando o bem-estar global. 6. Estratégias psicológicas para enfrentar o estigma Diversas abordagens terapêuticas e comunitárias podem fortalecer o bem-estar emocional.
Psicoterapia individual
• Reestruturação cognitiva de crenças negativas (“não valho nada”, “ninguém vai me amar”). • Trabalho com vergonha, culpa e autoimagem. • Desenvolvimento de estratégias de coping e autocuidado emocional. Grupos de apoio
A troca com outras pessoas vivendo com VIH fortalece a identidade, reduz o isolamento e normaliza experiências. Grupos favorecem o senso de comunidade e pertencimento.
Psicoeducação
Compreender I = I, adesão ao tratamento e a natureza crónica controlável do VIH diminui medo e desinformação. Informação é uma das principais ferramentas contra o estigma.
Aconselhamento para revelação A psicologia ajuda na decisão de quando, como e para quem revelar o diagnóstico, diminuindo ansiedade e riscos de rejeição. Intervenções comunitárias Campanhas educativas, rodas de conversa, escolas e mídias sociais podem reduzir estigma social e promover empatia e conhecimento. Enfoque nos direitos humanos Trabalhar o empoderamento, a autonomia e o direito à dignidade fortalece a auto-estima e combate o estigma estrutural.
O estigma relacionado ao VIH/ SIDA permanece como um factor determinante na saúde emocional, nas relações sociais e na qualidade de vida das pessoas que vivem com VIH.
Da perspectiva psicológica, ele opera através de processos individuais, relacionais e sociais que produzem vergonha, isolamento, medo, perda de auto-estima e redução de projectos de vida. Superar o estigma exige intervenções em múltiplos níveis: • individual (psicoterapia, ressignificação emocional); • interpessoal (apoio social e vínculos saudáveis); • comunitário (educação e redução de preconceitos); • estrutural (defesa de direitos e políticas públicas inclusivas).
Com apoio psicológico adequado, informação actualizada e redes de protecção, é possível fortalecer a auto-estima, melhorar relações sociais e ampliar a qualidade de vida, permitindo que pessoas vivendo com VIH construam vidas plenas, produtivas e emocionalmente saudáveis.
Por: Fátima Tomás Dias dos Santos Gama









