Não queria escrever sobre o assunto, mas a tentação venceu. A cada novo caso mediático que chega às barras da justiça angolana, a sensação de déjà-vu tornase inevitável, dado que são processos longos, com provas controversas, decisões polémicas e, no fim, a conta a ser paga por todos.
A ideia surgiu no exacto momento em que a juíza Ana Bela Valente anunciou, em plena sala de audiências, que não há provas de que o general Manuel Hélder Vieira Dias Júnior “Kopelipa”, por meio do extinto Gabinete de Reconstrução Nacional (GRN), tenha concedido um empréstimo de 150 milhões de dólares à China Sonangol International, Lda (CSI).
Uma empresa sediada em Hong Kong, constituída ao abrigo de um acordo que existia entre o conglomerado de empresas do magnata sino-britânico Sam Pa e o Executivo angolano.
A absolvição do general Kopelipa em relação aos 150 milhões de dólares entregues à CSI não surpreende. O que indigna é a facilidade com que se concluiu que não há provas suficientes, quando a própria beneficiária do alegado empréstimo reconheceu, no seu relatório financeiro, ter recebido o dinheiro de forma faseada, com a obrigação de devolver até 31 de Dezembro de 2018. Recebeu, não devolveu e o Estado, mais uma vez, ficou a ver navios. Literalmente.
A acusação sempre sustentou existir documentação capaz de demonstrar a operação. No entanto, o tribunal concluiu que a única referência material à transferência desta quantia, do GRN para a esfera jurídica da empresa, está no relatório financeiro da própria CSI, referente ao exercício de 2008. O resultado prático é simples e doloroso, sendo que se tratam de fundos públicos, pelo que os contribuintes angolanos ficaram lesados em 150 milhões de dólares cuja circulação não se sabe se ocorreu por via bancária ou se via “malas”, como no célebre caso do major Pedro Lussati.
Mais grave ainda, permanece sem explicação o que o Estado teria a ganhar, em contrapartida, ao efectuar tal empréstimo por via do GRN, estrutura cuja missão era reconstruir o país, não financiar empreitadas privadas.
O desfecho deixa-nos com um prejuízo enorme e perguntas sem resposta: como saiu o dinheiro do GRN? Quem autorizou? Por quê? E, sobretudo, onde estão os responsáveis pelo não reembolso até hoje? O discurso jurídico pode tentar adormecer consciências, mas a matemática é simples e o resultado é que perdemos 150 milhões de dólares e ninguém é responsabilizado. Razão pela qual é difícil compreender como se aceita, sem sobressalto, que uma quantia tão elevada simplesmente desapareceu num circuito cuja transparência ninguém conseguiu explicar.
Por estes dias de reflexão sobre o que se passou naqueles dias de audiência, tem sido difícil aceitar que um gestor inclua, num relatório financeiro e com aprovação hierárquica, uma operação de empréstimo que nunca existiu.
O mínimo que se esperava é que o tribunal investigasse a fundo as circunstâncias da transacção, sobretudo porque o episódio ocorreu um ano depois de o BNA ter registrado uma saída anormal de capitais, estimada em 1,641 mil milhões de dólares, conforme dados constantes na rubrica de “Erros e Omissões Líquidos” da Balança de Pagamentos, disponível no seu site.
Em 2011, esse valor caiu para 17,5 milhões, mas o precedente já estava criado. Detalhes? Talvez. Mais detalhes que fariam toda a diferença caso o tribunal tivesse ido mais longe na reconstituição dos factos relacionados a essa alegada operação.
Num país que enfrenta uma crise socioeconómica severa, 150 milhões de dólares teriam hoje profunda utilidade para financiar vários projectos inscritos nos sucessivos Orçamentos Gerais do Estado, muitos dos quais não saem do papel por falta de verbas.
Para sermos mais precisos, estamos a falar de escolas por construir (num país onde mais de 4 milhões de crianças e adolescentes se encontram fora do sistema de ensino, segundo dados do Censo de 2024), hospitais sem equipamentos suficientes e água potável ainda a faltar em tantas províncias.
Outro elemento sensível do processo envolve Manuel Vicente, à época a figura mais influente da Sonangol. A acusação aponta-o como peça central das operações que envolviam a petrolífera pública e a China Sonangol International Holding Limited.
O facto de ele ter sido apenas arrolado como testemunha levanta, naturalmente, suspeições, pois os documentos do processo indicam que exercia cumulativamente o cargo de presidente do Conselho de Administração da China Sonangol International, numa altura em que esta empresa terá desfalcado o Estado em mais de 1,598 mil milhões de dólares, resultantes da venda de 27 carregamentos de petróleo bruto.
Perante tudo isto, a mensagem que fica é a de que o combate à corrupção continua desigual, isto é, duro para uns, brando para outros. E as decisões judiciais, mesmo quando envoltas em linguagem técnica, terão sempre impacto no quotidiano dos cidadãos que estão privados de diversos serviços sociais básicos, muitos deles por falta dos mesmos fundos que agora damos como perdidos.
Estes podem parecer pormenores isolados, mas, juntos, transformam o caso numa manta de retalhos com pontas soltas que mereciam aprofundamento. E não deixa de ser evidente que a forma como o combate à corrupção tem sido conduzido e os seus resultados fará jorrar muita tinta, como se costuma dizer na gíria jornalística, isto é, renderá muitas obras académicas, ensaios, documentários, filmes, séries e peças teatrais.
Cada caso mediático destas últimas décadas guarda material suficiente para gerar uma obra robusta, capaz de registrar factos, revelar lições e servir de arquivo para as gerações futuras, como acontece com a obra “Burla Tailandesa: Para além do processo”.
Entretanto, há uma exigência inadiável para todos os que dedicam as suas carreiras ao combate à corrupção, sobretudo os que o fazem por dever de ofício: devem reflectir sobre como serão lembrados pelo rigor, zelo e sentido de justiça demonstrados. A actuação de cada operador do Direito está hoje a ser escrutinada e continuará a sê-lo amanhã.
A juíza conselheira Ana Bela Valente lembrou, com sobriedade, que gestores públicos e operadores da justiça devem ter sempre em mente que “passarão deste mundo para outro, e as obras ficarão”.
Daí ter transformado o acórdão que absolveu o general Kopelipa num verdadeiro compêndio de lições de direito penal e processual penal, sobretudo para o Ministério Público, que não pode continuar a incorrer em erros que fragilizam a credibilidade da justiça.
Uma das lições mais relevantes diz respeito à aplicação indevida do crime de tráfico de influência, já que, à data dos factos vigorava o Código Penal de 1886, que não tipificava tal crime. Assim, tanto o magistrado que deduziu a acusação como os juízes que dirigiram a instrução contraditória e a pronúncia violaram o princípio da legalidade, segundo o qual não há crime nem pena sem lei prévia que os estabeleça.
Por essa razão, Ana Bela Valente considerou que o erro não era sequer uma questão de aplicação da lei no tempo, mas de inexistência absoluta de base legal. Mesmo assim, o seu acórdão será, no futuro, inevitavelmente avaliado como parte do legado que deixa enquanto juíza da mais alta instância judicial do país.
O processo terminou em primeira instância e os 150 milhões desaparecidos ficarão na memória colectiva como mais uma factura que o povo paga, enquanto o país continua à espera dos dias em que a justiça e a verdade caminhem lado a lado.
Jornalista









