“O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente.” A frase do poeta brasileiro Mário Quintana poderia muito bem servir de epígrafe à história de Samuel Abrigada, médico angolano formado na Alemanha, pastor protestante, militante da FNLA e protagonista de um dos episódios mais controversos do período que antecedeu a independência de Angola. Educado na Europa e respeitado entre os seus pares, Abrigada carregou para sempre uma mancha que o tempo não conseguiu apagar.
O seu nome poderia figurar apenas entre tantos outros combatentes e dirigentes da FNLA que marcaram presença no diário de Onofre dos Santos, intitulado “Os (meus) dias da Independência: testemunhos”, como bravos contribuidores para a luta de libertação nacional.
Mas não foi o caso. A sua trajectória ficou ligada a um episódio que ecoou além-fronteiras e se tornou, com o tempo, símbolo de como as fronteiras entre o idealismo político e a ética pública podem facilmente se desvanecer. Tudo aconteceu durante a vigência do Governo de Transição, empossado a 31 de Janeiro de 1975, em Luanda, resultante do Acordo de Alvor, assinado por Agostinho Neto, Holden Roberto, Jonas Savimbi e representantes do Estado português.
O Governo, concebido como experiência de unidade nacional, integrava ministros indicados pelos três movimentos de libertação e visava preparar a proclamação da independência de Angola.
Samuel Abrigada assumiu papel relevante na execução das decisões saídas de Alvor, pois figurou entre os subscritores da Lei Fundamental de Angola, publicada a 30 de Junho de 1975, que reconhecia o direito do povo angolano à independência e à soberania plena. Era tido como um quadro de prestígio e competência técnica, em função das contribuições que prestou nas reuniões do Conselho de Ministros, em que participou activamente como representante dos Ministérios do Interior e o dos Transportes e Comunicações.
Mas a história tomou outro rumo. Poucos meses depois da tomada de posse, o seu nome começou a circular nos corredores do poder e nas conversas discretas dos diplomatas estrangeiros que acompanhavam o processo de transição. O rumor esteve baseado no levantamento de uma quantia equivalente a cem mil contos (quatro milhões de dólares à época) no cofre do Banco de Angola.
O dinheiro, retirado em espécie e transportado numa mala, desapareceu sem explicações convincentes. Ninguém soube ao certo se os fundos se destinavam a programas do Ministério da Saúde, pasta que então dirigia, ou se eram, na verdade, recursos encaminhados ao movimento de libertação a que pertencia.
A versão que ganhou força foi a de que o doutor Abrigada teria decidido, por conta própria, destinar o montante à FNLA. O episódio ficou conhecido como “o caso dos 100 mil contos”, e o ministro passou a ser chamado, com ironia e malícia, de “Cem Mil Obrigada”.
Onofre dos Santos, que conviveu de perto com vários protagonistas desse período, recorda no seu diário que o caso se tornou motivo de embaraço dentro e fora do Governo de Transição e, por conseguinte, manchou a imagem de um homem até então respeitado por sua formação europeia, sua fé e seu discurso nacionalista. O rumor atravessou fronteiras e chegou ao conhecimento do diplomata brasileiro Ovídio de Andrade Melo, Representante Especial do Brasil em Angola, que o relatou num telegrama datado de 30 de Abril de 1975.
No documento, anexado no livro do investigador brasileiro José Francisco dos Santos, intitulado “Angola: política externa brasileira para África no olhar de Ovídio de Andrade Melo”, o diplomata descreve que Samuel Abrigada teria levantado fundos suplementares e, em vez de aplicá-los em programas de saúde pública, “apoderou-se dos quatro milhões de dólares em moeda angolana e levou-os, em valises de mão, directamente ao partido em Kinshasa, para socorro aos refugiados”.
Ovídio acrescentava que a notícia lhe chegara por via de Eiras Rebello, antigo assessor do Ministério da Saúde, e fora confirmada por representantes do Escritório da Organização de Refugiados.
Além de que a Rádio Zaire, à época, noticiou o mesmo, declarando que o dinheiro fora recebido pela FNLA “para socorrer refugiados angolanos”. O retrato que Ovídio de Andrade Melo traçou do ministro da Saúde é o de um homem movido por fé e voluntarismo, mas prisioneiro de uma visão partidária da governação.
Pois, enxergava o problema da saúde pública em Angola quase exclusivamente sob a óptica dos refugiados no ex-Zaire, que deveriam regressar ao país a tempo de votar na FNLA nas eleições que deveriam ocorrer depois da proclamação da independência nacional.
Enquanto titular da pasta, se debatia com problemas financeiros visto que os fundos do Ministério estavam sob controlo de outros departamentos, designadamente, das Finanças e Planeamento, dirigidos por portugueses e por quadros do MPLA, que viam com desconfiança as suas iniciativas.
Para agudizar ainda mais a situação, a ajuda internacional, mediada pela ONU e pela Organização Mundial da Saúde, chegava lentamente e, na leitura do diplomata brasileiro, Abrigada mostrava-se impaciente e pouco disposto a submeter-se aos trâmites administrativos.
Sem acesso aos recursos e pressionado pelo desejo de mostrar resultados imediatos, terá decidido agir por conta própria. O gesto, que para uns simbolizava compromisso com os refugiados e com o sofrimento do seu povo, para outros revelou o perigoso cruzamento entre a devoção partidária e o desvio de fundos públicos.
Foi, nas palavras de Ovídio, uma “medida governativa pouco ortodoxa”, que o elevou “na estima do seu partido”, mas comprometeu a sua imagem perante o Governo de Transição e a opinião pública.
A partir desse momento, Samuel Abrigada passou a ser visto com desconfiança. Quando, meses depois, a FNLA e a UNITA decidiram formar um Governo conjunto que daria origem à efémera República Democrática de Angola, com capital no Huambo, Holden Roberto quis nomeá-lo novamente ministro da Saúde, mas Jonas Savimbi recusou terminantemente.
Onofre dos Santos, testemunha de uma reunião interna da FNLA que visou analisar a lista dos militantes que assumiriam cargos no novo governo, relata que Holden argumentou ter investido na formação do médico e não o imaginava noutra função.
No entanto, teve de recuar mais adiante, porque Savimbi manteve a sua posição, dando a entender que acreditava piamente que um homem com aquele histórico não poderia gerir bens públicos. Assim, o nome de Samuel Abrigada foi riscado da lista e ele, silenciosamente, desapareceu da cena política. Regressou à Europa e, apesar de distante de Angola, as sombras do episódio ficarão registrados na sua passagem pelo mundo.
A crónica desse “assalto” ao cofre do Banco de Angola, mais do que uma anedota política, é uma lição sobre a fragilidade da ética quando confrontada com o poder e a necessidade.
Samuel Abrigada pode ter acreditado estar a servir uma causa nobre, mas a história raramente distingue boas intenções de más decisões. Hoje, o seu nome permanece como lembrança amarga de como a fronteira entre o idealismo e a corrupção pode ser ténue. E, por outro lado, de como o passado, mesmo que se tente enterrá-lo, teima em regressar.
A outra lição que se pode tirar dessa história é que ceder à ganância ou ao impulso de confundir o bem público com a lealdade partidária é um erro que o tempo não apaga. A história encarrega-se sempre de o revelar, como uma cicatriz que resiste à passagem das gerações.
E se o protagonista já não estiver entre nós, caberá aos seus descendentes suportar o peso de um nome que, por um gesto impensado, se tornou sinónimo de desconfiança e vergonha.
Jornalista
 
			 
					



 
							



