Ao projectar esta cena de remorso, Paula Russa não absolve o colono, mas expõe o fracasso moral do seu humanismo. A morte sacrificial do patrão, que se interpõe para salvar o criado, não purifica a culpa histórica: transforma-a num melodrama cristão.
O “branco que morre pelo preto” é o ápice do mito lusotropical — o gesto de reconciliação que apaga o crime da escravatura pela virtude do arrependimento. Porém, como observa Frantz Fanon (1952/2008), “a bondade do branco é apenas o disfarce do seu domínio; ao conceder humanidade ao negro, reafirma-se como seu criador”. O colono não liberta Zito: reafirma-se como seu Deus.
O “lusotropicalismo natural” manifesta-se, portanto, como um sentimento, não como uma ideologia formal. É o modo como a servidão se torna hábito, como a hierarquia se torna moralidade. Quando Zito afirma: “Sentia saudades dos velhos tempos… Nada mais tinha senão as suas belas lembranças… a viagem que o fizera sentir-se realmente um preto distinto dos demais” (p. 71), ele celebra a própria diferença que o exclui.
O “preto distinto” é o produto acabado da colonização cultural — alguém que já não pertence à comunidade de origem nem é aceite plenamente na do opressor. A autora, ao ancorar essa ambiguidade na memória de um velho moribundo, devolve ao leitor a imagem de uma Angola pós-colonial que ainda dialoga com as sombras do passado.
O narrador omnisciente apresenta um Zito nostálgico, solitário e pobre, vivendo “no mesmo bairro e na mesma casa de adobe onde nasceu” (p. 71), como quem cumpre um destino circular: o retorno à terra que negou, o reencontro com o corpo africano.
Esse regresso final é o momento em que o lusotropicalismo natural implode — o corpo que acreditou na harmonia racial termina esquecido, alimentado pelas sobras “das suas refeições” (p. 70). A ternura dos brancos não garantiu pão, nem o amor substituiu a cidadania.
A escrita de Paula Russa, subtil e emocionalmente contida, desmonta o mito sem o proclamar. Ao contrário de uma denúncia directa, ela opta por uma ironia trágica: o negro ama o seu opressor, o opressor morre por ele, e o mundo continua igual. A narrativa constrói, assim, um microcosmo simbólico de Benguela — espaço onde o “lusotropicalismo natural” não é uma política, mas uma herança afectiva e ambígua.
O leitor percebe que, no fundo, o amor de Zito pelos patrões e o arrependimento de Antunes fazem parte da mesma engrenagem: a da colonização emocional. Zito Maimba morre pobre, analfabeto e saudoso — mas, paradoxalmente, dignificado pela memória.
A sua inocência torna-se denúncia, e o seu conformismo, resistência passiva. Em última análise, Paula Russa convida-nos a pensar que o verdadeiro legado colonial não é o território, mas a alma: uma alma educada para servir, agradecer e recordar com ternura a própria servidão.
Eis o coração do lusotropicalismo natural — não o discurso de Freyre, mas a sua versão interior, que floresceu nas casas coloniais de Benguela, onde o amor se confundia com a obediência e o afecto com a desigualdade.
Por: FERNANDO TCHACUPOMBA