O romance analisado revela, sob a aparência de uma história de fidelidade e gratidão, uma profunda teia de ambivalências coloniais, na qual o mito do “bom colono” e do “preto diferente” se entrelaça com a estrutura de dominação herdada do império.
Paula Russa, escritora angolana com raízes na província da Huí la e residência em Benguela desde 1965, reconfigura, a partir da me mória ficcional de Zito Maimba, o discurso lusotropicalista que se implantou subtilmente na socie dade colonial angolana — um dis curso que defendia a convivência harmoniosa entre portugueses e africanos, como se o colonialis mo luso tivesse uma vocação hu manista e integradora.
Contudo, ao reler o quotidiano de Zito, vemos o inverso: a harmonia é apenas uma máscara que disfarça a violência simbólica e a alienação cultural. Zito Maimba encarna o que poderíamos chamar de “lusotropicalismo natural”, uma expressão que remete à aparente naturalização do domínio colonial no imaginário social.
A autora cria um sujeito que, por força das circunstâncias e da educação colonial, interioriza o lugar de subordinação até o ponto de o desejar. “Dei tou-se, pensando no casal Antunes com delicadeza. Não podia ter tido melhores patrões que esses aí. São mesmo filhos de Deus.
Eu tive sorte e a avó Rosa sabia bem o que fazia quando me deixou aqui” (p. 23). Nesta frase, a gratidão converte-se em renúncia. O colono, ele vado à categoria de divino, torna se mediador entre o céu e a terra, enquanto o negro se resigna ao lugar do servo agraciado.
Esse gesto de agradecimento não é inocente. Ele traduz a eficácia de uma pedagogia colonial que formava “pretos dóceis” e fiéis, não pela força física, mas pela persu asão moral.
O que a autora designa como “bons patrões” traduz o que Gilberto Freyre chamou de brandura dos trópicos — a suposta suavidade da colonização portuguesa, feita de convivência e afeto.
Mas, como observa Inocência Mata (2010), “a retórica da mestiçagem e da fraternidade lusotropical é apenas o modo mais subtil de manter a hierarquia, substituindo a coação pela cordialidade”. As sim, o que vemos em Benguela é uma versão doméstica do império: a casa dos Antunes converte se numa miniatura de Portugal, com Zito como símbolo da ordem colonial.
O lusotropicalismo de Zito não é ideológico por escolha, mas por absorção vital. Crescido entreparedes brancas e hábitos urbanos, “morava na cidade, dormia numa cama, vestia e falava bem, mas no resto era igual a eles. Nunca estudei, não sei ler, nem escrever, não sei ver horas no relógio, trabalho para agradar os patrões.
Não passo de um criado analfabeto…” (p. 57). Aqui, a voz narrativa desmonta a contradição: o privilégio material não redime a exclusão cultural. O quarto, a roupa e a fala são mar cas de assimilação; o analfabetismo é o selo da exclusão.
A supos ta igualdade proclamada pelos colonos é desmentida pela negação do saber, o único bem que pode ria libertar o sujeito do estatuto de servo.
O gesto de negar a escola é, neste sentido, o verdadeiro mecanismo de poder — e o arrependi mento posterior do patrão Antunes revela a consciência tardia de uma culpa sistémica: “Com a sua alma gigante e cheia de bondade, talvez um cidadão capaz de contribuir para o futuro grandioso da sua Pátria. Um intelectual… O que foi que fiz eu com o meu egoísmo?”.
Por: Fernando tchacuPomba