Sei que sou muito novo, “mesmo”, mas quem verdadeiramente me conhece sabe que tenho um ouvido atento e seletivo. Não no sentido de me limitar a um único género musical — erro que cometi durante a adolescência —, mas porque aprendi que cada estilo traz sempre algo a ensinar, recriar e fundamentar.
A música nunca foi apenas entretenimento; sempre desempenhou um papel central na vida social e cultural dos povos. Aliás, a arte em si, seja em que forma for, carrega esta função de permanência, memória e transformação.
E quando se fala de Angola, é impossível não trazer à tona o nome de Ruy Mingas. Mesmo que alguns não identifiquem o seu rosto, é quase certo que já escutaram as suas composições. Tocadas nas rádios — esse meio que continua a ser o mais massivo e próximo da vida angolana —, as canções de Mingas atravessam gerações. Tornaramse uma espécie de hinos populares, músicas que carregam tanto a dor como a esperança de um país que aprendeu a transformar as suas cicatrizes em canto. Entre os feitos que o imortalizam está a composição do Hino Nacional de Angola, “Angola Avante”, com letra de Manuel Rui Monteiro.
A primeira estrofe — “Angola, avante! / Revolução pelo poder popular” — já anuncia uma pátria em construção, onde a luta política se torna canto coletivo. Este marco, por si só, já lhe garante um lugar eterno na história da cultura nacional.
Afinal, um hino não é apenas uma canção, mas um símbolo da pátria, entoado em momentos de vitória, de luto e de celebração. Foi precisamente através de Mingas que eu próprio descobri a poesia angolana. Muitos poemas chegaram-me primeiro como canção, antes mesmo de os encontrar em livros.
Por exemplo, só percebi a força lírica de Mário Pinto de Andrade, conhecido sobretudo como ensaísta e pensador político, quando ouvi a sua “Canção de Sabalu”, interpretada por Mingas.
O verso “Sabalu, velho pescador, / na tua rede cabe o mar” mostra como a imagem poética ganha vida ao ser cantada, fazendo do mar não apenas espaço natural, mas metáfora de resistência e de futuro. Nesse momento, compreendi que a música pode ser uma porta de entrada para a literatura, que os poemas, quando musicados, ganham nova respiração e chegam a públicos muito mais amplos. Outro exemplo marcante é “Pátria Unida”, poema de Manuel Rui musicado por Mingas, onde se ouve: “Somos a chama que não se apaga, / somos a pátria imortal”.
Aqui, a poesia não fica confinada à página: ao ser cantada, ela amplia o seu alcance, transformandose num hino da unidade nacional, repetido em manifestações públicas, encontros políticos e momentos de celebração coletiva.
Não podemos esquecer a sua ligação ao Ngola Ritmos, grupo fundado pelo seu tio, Liceu Vieira Dias, considerado a raiz da música moderna angolana. Mais tarde, Mingas integrou o coletivo, tal como o seu irmão André Mingas, a incomparável Lourdes Van-Dúnem e outros nomes de referência. O Ngola Ritmos não foi apenas um agrupamento musical: foi também um movimento cultural e político, um espaço de resistência onde cantar Angola era já um ato de libertação. Foi nesse ambiente que Ruy Mingas amadureceu a sua sensibilidade artística e a sua consciência da música como instrumento de identidade e de luta.
A obra de Mingas revela-se, assim, em múltiplas dimensões. Por um lado, é uma discografia rica, marcada por sucessos que ainda hoje ecoam nas rádios e nos encontros familiares. Por outro, é um testemunho histórico, pois muitas das suas canções foram criadas e interpretadas em momentos cruciais da nossa trajetória como povo. Além disso, é também um espaço de interseção entre artes: a poesia e a música encontram-se nele de forma natural, criando algo que é simultaneamente estético e político, íntimo e coletivo. Chamar-lhe apenas músico seria reduzir a sua grandeza. Ruy Mingas é uma ponte.
Uma ponte entre literatura e música, entre passado e futuro, entre tradição e modernidade. A sua voz não apenas interpretou poemas, mas deu-lhes nova força, devolveu-lhes corpo e sonoridade. Assim, quando ouvimos as suas canções, não escutamos apenas notas ou versos, mas sim a história dedilhada nas cordas do violão, a pátria respirando em cada melodia, a poesia tornando-se melodia viva.
É por tudo isto que considero quase impossível alguém se afirmar angolano sem conhecer a obra deste “monstro sagrado” da música nacional. Ruy Mingas não pertence apenas à sua geração, mas a todas.
Ele representa um pedaço inteiro da nossa identidade cultural, um arquivo sonoro da memória nacional. Reconhecer o seu legado não é apenas uma questão de gosto, mas de consciência histórica. Em Ruy Mingas, a poesia encontrou a sua voz. E essa voz, transformada em música, continua a ecoar como parte essencial da angolanidade, lembrando-nos que a arte é, afinal, o modo mais profundo de um povo dizer-se a si mesmo.
Por: FERNANDO TCHACUPOMBA