Quando se fala da Luta de Libertação Nacional, a memória colectiva parece fixar-se quase sempre na imagem dos guerrilheiros, de armas em punho, enfrentando o colonialismo português. O espaço para os jornalistas, músicos e escritores, que também ergueram trincheiras através da palavra, do som e da escrita, permanece reduzido a notas de rodapé.
A literatura ganhou algum fôlego por contar com políticos-guerrilheiros que a cultivaram, como Pepetela, António Jacinto, Viriato da Cruz, Uahenga Xito, entre outros, mas a música e o jornalismo ainda estão longe de ocupar o lugar devido nas páginas da nossa história.
Muito disso decorre da forma como a narrativa oficial construiuse, sobretudo nos manuais escolares, elaborados pelo Ministério da Educação, onde não se encontra qualquer referência ao papel cultural e mediático no combate colonial.
Ainda assim, onde faltam as linhas formais, sobrevivem os testemunhos, dispersos em livros de memória, gravações de televisão e de rádio e programas que marcaram época, como “Angola Combatente”, transmitido pelo MPLA a partir de Brazzaville, e “Angola Livre”, voz da FNLA irradiada de Kinshasa.
Foi nesse terreno que se destacou Siona Bole Casimiro wa Tulanta, nascido em 12 de Maio de 1944 em Matadi, no Baixo Congo, filho de emigrantes oriundos de Cuimba, na actual província do Zaire.
Jornalista por vocação e convicção, Siona iniciou-se profissionalmente em 1966, aos 22 anos de idade, estagiando na Agence Congolaise de Presse, após ter aprimorado técnicas de escrita em Paris.
Desde cedo, os seus artigos mostraram-se mais do que relatos: eram testemunhos vivos de uma época. Expunham tanto os horrores coloniais como as contradições internas dos movimentos de libertação. O seu trabalho tinha algo de raro: imparcialidade em meio à guerra.
Pelo que, ler alguns dos seus artigos hoje, é viajar por um passado que nos ajuda a melhor compreender o presente e perspectivar o futuro. Assinando muitas vezes com o heterónimo Gigi Siona, deixou páginas memoráveis, como o célebre “Angola: Luta Armada dentro em breve oito anos”, publicado em Janeiro de 1969, no semanário “Actualités Africaines”, onde narrou sem privilegiar nem demonizar partido algum: “O presente estágio do nacionalismo angolano militante está particularmente caracterizado pelo endurecimento das posições dos dois lados relativamente ao problema da unidade”.
Era o retrato de um país ainda por nascer, preso às divisões internas que minavam os esforços comuns. Por intermédio da sua pena e de outros companheiros de jornada, o mundo tomava conhecimento sobre os bastidores das várias tentativas fracassadas de se criar a unidade entre os movimentos de libertação nacional.
Algumas iniciativas dos próprios líderes de tais movimentos e outras de líderes de outros países que entendiam ser o caminho ideal para Angola e os angolanos prosperarem. Naqueles tempos difíceis, em que a censura colonial privava os jornalistas de obter contraditório, na ânsia de valorizar apenas a versão dos factos narrados pelos seus, tornava-se determinante o trabalho desempenhado por jornalistas angolanos que gozavam de relativa liberdade e se encontravam ao lado dos combatentes, sem integração formal nas unidades de guerrilha, e também sem se deixarem manipular.
É assim que, sem cair em propaganda, Siona relatava o que via, sem receio de apontar as nuvens que poderiam toldar a independência sonhada. No referido artigo, publicado a 18 de Janeiro, narra que “a 4 de Fevereiro de 1969 e a 15 de Março, o MPLA e o GRAE (Governo Revolucionário de Angola no Exílio) comemoram respectivamente – cada um do seu lado e cada um a seu modo – o 8.º aniversário da resistência armada contra o colonialismo português. Considerado sob o ângulo militar, o balanço é satisfatório”.
Esse equilíbrio foi sublinhado anos mais tarde pelo bispo emérito de Mbanza Congo, Dom Vicente Kiaziku, que, na obra “Maquis e Arredores: Memórias do Jornalismo que Acompanhou a Luta de Libertação Nacional”, reconheceu que, apesar de Siona não esconder a sua empatia pelo MPLA, nunca deixou de revelar as fragilidades ou lado negativo deste partido, com a mesma clareza que faziam com as dos demais.
Para o prelado católico, isso era, afinal, a prova de que a imparcialidade jornalística é possível mesmo em cenários onde tudo conspira contra ela. Na década de 1970, a sua pena alcançou momentos decisivos.
Assinando como Siona Bole, no semanário Horizons 80, produziu diversas matérias que ecoaram pelo mundo, transmitindo não só o pensamento dos guerrilheiros angolanos como dos colonizadores, acerca de factos ocorridos depois de 25 de Abril.
Com mestria, entrevistou figuras como Mário Soares, então ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, e Jonas Savimbi, em Novembro de 1974, neste semanário.
Textos que, hoje relidos, soam como cápsulas de tempo, capazes de nos devolver o tom das negociações, os receios, as estratégias e as ambições de uma Angola em parto, envolvendo os presidentes da FNLA e da UNITA, Holden Roberto e Jonas Savimbi, respectivamente. Após a independência, o “mais velho Siona” ou o “decano dos jornalistas”, como era tratado no meio jornalístico, não se limitou a assistir.
Trabalhou em diversos órgãos estrangeiros e nacionais, como a Angop, dirigida pelo antigo guerrilheiro Luís Neto Kiambata. Participou na fundação do Sindicato dos Jornalistas Angolanos, esteve na génese do MISA Angola, integrou o projecto de criação da Associação Democrática dos Jornalistas Angolanos no exílio e foi a primeira pessoa a quem coube a missão de dirigir o Centro de Imprensa Aníbal Melo.
Abraçou o desafio de fazer parte do Conselho Nacional de Comunicação Social, entre 1992 e 2002. Mas, em todos esses cargos, manteve-se fiel à essência: a veia de repórter se manteve inalterada. Testemunhamos um episódio ocorrido no dia 13 de Junho de 2011 que ilustra bem essa fidelidade. Durante o julgamento do jornalista William Tonet, no histórico Palácio Dona Ana Joaquina, na baixa de Luanda, o juiz Manuel Pereira da Silva proibiu os repórteres de tomarem apontamentos, mesmo sendo uma audiência pública.
Siona levantou-se, com a anuência do magistrado judicial, e, com a serenidade que lhe era característica, disse: “Se não puder tomar notas, não poderei exercer o meu trabalho. Prefiro sair”.
O juiz Manuel da Silva manteve a sua posição, acreditando que estava a prestar um serviço relevante à Pátria, e a resposta surpreendeu a assistência e os mais jovens jornalistas presentes. Não era comum ver um magistrado contestado em plena audiência, e muito menos com tamanha firmeza. Mas era assim que Siona entendia o jornalismo: ou se faz com dignidade, ou não se faz. Siona Casimiro partiu para outra dimensão da vida em 2023, vítima de doença, em França.
Apesar da idade, 78 anos, continuava a servir o país meio do jornal O Apostolado, que dirigia, e como membro do Conselho Editorial da Rádio Ecclésia, através da qual brindava semanalmente os ouvintes com uma crónica na rubrica Visão Jornalística. Partiu sem alardes, mas deixounos uma herança moral e profissional que não pode ser esquecida. Num tempo em que parte da juventude procura referências e caminhos, revisitar o seu legado é mais do que exercício de memória: é lição de vida.
O testemunho dos seus ex-companheiros de banca, como o malogrado nacionalista e embaixador Luís Neto Kiambata, constante na sua obra acima referida, lembra-nos que é possível sonhar com uma sociedade onde as diferenças políticas, sociais e ideológicas não sejam barreiras, mas motivos de encontro.
No fim, o exemplo de Siona Casimiro mostra-nos que a independência não se conquistou apenas no campo de batalha. Conquistou-se também na palavra, no rigor, na coragem de contar o que se viu sem medo de ferir susceptibilidades.
Porque a caneta, nas suas mãos, foi sempre mais do que instrumento: foi arma de liberdade. Ficou a certeza de que, para além da luta armada, a batalha pela independência travou-se também nas rádios clandestinas, nos jornais e nas canções que circularam dentro e fora do território.
Jornalista