O português (falado em Angola), Em algum lugar, não muito longe daqui, a música era como um rio de águas cristalinas, que corria pelos quintais, contava histórias, alegrava os dias e fazia crescer bonitos passos nos pés das crianças e todos naquele lugar. Num dia, como desses que vivemos, o rio foi invadido por águas estranhas, impura para o consumo.
Trazia batidas que alegravam, contavam historias, mas outras historias, que que não espelhavam o respeito e tampouco o amor. As novas histórias falavam de copos, fumos e corpos como fossem mercadorias.
As crianças dançavam as novas batidas com gestos que não compreendiam, mas dançavam e como dançavam. Dona Silvana, sentada na varanda, via os filhos e sobrinhos repetirem movimentos impróprios para as suas idades. Lhe doía ver tais passos e, sobretudo, os aplausos dos adultos que diziam que era talento, que era cultura.
Ora, Silvana sabia e proclamava que cultura não rouba, não envelhece, mas acrescenta e rejuvenesce quem a consome. Um dia, como o de segunda-feira, Dona Silvana, foi a escola dos meninos e pediu que se calassem certas músicas, que protegessem os ouvidos dos mais pequenos.
Na terça foi chamada de velha, acusada de querer matar a alegria. Na quarta-feira, o som da batida soou mais alto, como se quisessem enterrar a sua voz. E, de facto, calaram, ela e outros que saíram em protesto ao aumento do preço dos combustíveis.
Na confusão, enquanto ela trazia o filho da escola, a polícia abriu fogo. Disseram que era para proteger a ordem. A ordem ficou de pé, mas Silvina caiu, aos olhos do filho. – Mamã, mamã – gritava o pequeno vendo o sangue de sua mãe correndo feito rio encarnado.
Os amigos choraram e a vizinhança marchou, não mais pelos combustíveis e tampouco pelos saques, mas porque o lugar, de todos eles, estava agora, a caminhar para abismo, ao som de batidas que roubam infância, aos olhos de uma cultura que não protege a criança.
Dias depois, na casa vizinha, apesar dos pesares, tocava-se a mesma música, de outros rios, sem pureza. E as crianças dançavam, balançavam os corpos pequenos enquanto os adultos, embalados no esquecimento, aplaudiam como se nada tivesse corrido.
Por: DITO BENEDITO
*Escritor e Jornalista