A visita oficial do Presidente João Lourenço a Portugal, ainda que breve, reveste-se de importância simbólica e política para repensar o estado actual das relações bilaterais entre os dois países.
Trata-se de uma oportunidade para olhar para a profundidade dos laços que nos unem, mas também para questionar com franqueza se, no presente contexto internacional e económico, Portugal continua a ser um parceiro prioritário para Angola ou se estamos perante uma nova configuração de interesses estratégicos, em que a prioridade se redistribui.
As relações entre Angola e Portugal remontam, incontornavelmente, à história colonial. Durante quase cinco séculos, Angola foi administrada por Portugal sob um regime de dominação que deixou marcas profundas, tanto no plano económico como sociocultural.
Esta longa convivência forçada criou um quadro de dependência assimétrica, mas também lançou as bases de uma interligação que, paradoxalmente, viria a ser fundamental no processo pósindependência.
A luta de libertação nacional, que culminou na proclamação da independência de Angola a 11 de Novembro de 1975, marcou o fim de uma era, mas não encerrou os laços.
Pelo contrário, abriu caminho a um novo tipo de relação, construída com base na soberania, no respeito mútuo e na necessidade de cooperação para o desenvolvimento.
Nos primeiros anos após a independência, as relações entre os dois países foram tensas, influenciadas pela Guerra Fria, pela instabilidade interna em Angola e pela posição ambígua de Portugal em relação aos movimentos de libertação.
No entanto, a partir da década de 1990, com o processo de paz a ganhar impulso e com o fim da guerra civil em 2002, Angola e Portugal iniciaram um novo capítulo. Com a estabilidade política e a reabertura económica, Portugal tornou-se um dos principais parceiros comerciais de Angola, reforçando os laços históricos com uma presença empresarial significativa. Ao longo das duas últimas décadas, a presença portuguesa em Angola intensificou-se.
Estima-se que cerca de 90 mil portugueses vivam hoje em território angolano, muitos dos quais ocupando posições de relevo nos sectores da construção civil, banca, saúde, educação, hotelaria e comércio.
Portugal, por sua vez, tornou-se destino de milhares de angolanos mais de 170 mil que procuram oportunidades de estudo, negócios ou estabilidade. Essa mobilidade humana consolidou uma dimensão quase orgânica da relação bilateral, onde as famílias, os negócios e os projectos de vida entrecruzam-se de forma contínua.
As comunidades luso-angolana e angolano-portuguesa tornaram-se um pilar informal, mas vital, da relação entre os dois países, funcionando como pontes de confiança, canais de investimento e plataformas de convivência intercultural. No plano económico, Portugal foi, durante muito tempo, um dos principais fornecedores de Angola.
Em 2023, o comércio bilateral atingiu aproximadamente 1,6 mil milhões de euros. Portugal exportou para Angola cerca de 1,2 mil milhões de euros em bens e serviços, enquanto as importações angolanas para o mercado português não ultrapassaram os 400 milhões de euros, concentrando-se principalmente em petróleo bruto.
Esta assimetria comercial levanta um debate necessário: será que essa relação serve plenamente os interesses estratégicos de Angola? Ou será que, mesmo mantendo Portugal como aliado, Angola deve diversificar os seus parceiros comerciais de forma mais activa? Nos últimos anos, a geopolítica e a geoeconomia têm imposto novas realidades.
Angola tem aprofundado relações com países como a China, a Turquia, os Emirados Árabes Unidos, o Brasil e a França. A aproximação a potências emergentes e a investimentos do Golfo tem ampliado o leque de parceiros disponíveis, o que desafia Portugal a redefinir o seu papel. Já não basta contar com a história, a língua ou a afinidade cultural.
Hoje, os critérios são pragmáticos: tecnologia, capital produtivo, formação de quadros, impacto social, transferência de conhecimento e respeito pelos termos da cooperação.
Para que Portugal continue a ser relevante na estratégia externa de Angola, precisa de ir além da lógica de exportador de bens de consumo e serviços. Precisa de investir directamente em Angola, apostar em parcerias industriais, apoiar a produção local e partilhar risco com os empreendedores angolanos.
O mesmo se aplica às instituições de ensino superior, às start-ups tecnológicas, às energias renováveis e à economia verde áreas onde Portugal tem experiência e onde pode ser um parceiro-chave para a diversificação da economia angolana.
Por outro lado, Angola também precisa tratar Portugal com seriedade estratégica. Mais do que parceiro de circunstância, Portugal pode desempenhar um papel de intermediário valioso entre Angola e a União Europeia, sobretudo num momento em que se discute a transição energética, os corredores de hidrogénio verde, a reforma das cadeias logísticas globais e a reconfiguração da segurança internacional.
A Lusofonia não deve ser apenas um património afectivo; deve tornar-se uma plataforma geoeconómica, onde Angola e Portugal se reconheçam como aliados num espaço multipolar em formação.
A visita do Presidente João Lourenço a Lisboa pode e deve ser lida como um gesto de reafirmação diplomática, mas também como uma oportunidade para relançar uma agenda de ganhos recíprocos.
As cerimónias oficiais, os jantares de gala e os discursos de cortesia terão pouco valor se não forem acompanhados de compromissos tangíveis para corrigir os desequilíbrios da balança comercial, apoiar a formação de quadros angolanos, financiar o sector produtivo local e facilitar a mobilidade de talentos entre os dois países. Portugal ainda é um parceiro relevante para Angola disso não há dúvidas.
Mas se continuará a ser prioritário, dependerá menos da história e mais da capacidade de construir o futuro em pé de igualdade. O tempo da nostalgia passou. É hora de desenhar uma parceria estratégica que seja útil, moderna e transformadora.
Por: SEBASTIÃO MATEUS
*Especialista em Relações Internacionais









