Há datas que parecem passar despercebidas na pressa do dia-a-dia, mas que carregam o peso da História inteira. O 18 de Julho é uma delas. Dia Internacional de Nelson Mandela. Data escolhida pela Organização das Nações Unidas (ONU), em Novembro de 2009, para assinalar o dia do homem que escolheu a prisão para não trair o sonho.
Dia do homem que se transformou em causa, símbolo e farol. Não é apenas um tributo ao líder sul-africano, símbolo da luta contra o apartheid, mas também um apelo global à acção, à justiça e à solidariedade.
Um convite a fazer mais, à imagem do homem que trocou 27 anos de liberdade pela esperança de um povo. O mundo recorda-o todos os anos: o prisioneiro de consciência que derrotou o ódio com o perdão, a vingança com o apelo à reconciliação. Mas há histórias que não chegam às comemorações oficiais. Há homens que não surgem nos cartazes, nem nas citações solenes.
No entanto, sem eles, Mandela talvez não tivesse cruzado os portões da liberdade. Uma liberdade forjada, também, com o suor e o sangue de muitos anónimos além-fronteiras.
Entre esses, milhares de angolanos que se ergueram contra o domínio sul-africano na região austral de África, defendendo a integridade dos seus territórios. O cidadão Fernando Amândio Mateus, ou simplesmente general Nando, é um desses homens. Corria o ano de 1974. Mandela já contava dez dos seus 27 anos de prisão, condenado por sabotagem e conspiração.
Ao mesmo tempo, a África do Sul do apartheid colocava em marcha planos para expandir a sua influência militar até Angola, considerando toda a África Austral um território estratégico.
Angola, Namíbia e o Zimbabwe faziam parte de uma só equação geopolítica. Como documenta o antigo chefe da Força Operativa da Agência Central de Inteligência em Angola, John Stockwell, na obra “A CIA contra Angola”, o regime de Pretória sentiu-se encorajado a invadir Angola, contando com o apoio do líder da UNITA, Jonas Savimbi, e o beneplácito de Washington.
Na época, existiam sinais claros do fracasso eminente do Governo de Transição e da rivalidade política entre os três movimentos de libertação nacional: MPLA, UNITA e FNLA.
Razão pela qual, em Outubro de 1975, a pouco menos de um mês para a proclamação da independência nacional, a 11 de Novembro, as Forças de Defesa da África do Sul desencadearam a “Operação Savannah” com vista a travar a ascensão do MPLA e colocar à frente dos destinos de Angola, ou seja, no poder, alguém cujos interesses estivessem alinhados aos seus. O que o afastava do MPLA, pois era um movimento alinhado aos interesses da SWAPO e do ANC, o partido de Mandela.
A resposta viria das Forças Revolucionárias de Cuba (FAR) que, em auxílio da recém-nascida Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA), braço armado do MPLA, realizou a “Operação Carlota”. Aos 17 anos, Nando acompanhou todo esse turbilhão de acontecimentos, cumprindo com a disciplina castrense, sendo que já fazia parte das FAPLA desde o dia 17 de Março de 1975. Mais tarde, tornar-se-ia um dos rostos das operações no sul do país, defendendo a soberania angolana com uma entrega absoluta. Casado e pai de três filhos, Nando vivia na província da Huíla quando recebeu, em Janeiro de 1988, uma nova missão.
O seu destino era o Cuíto Cuanavale, onde as tropas sul-africanas protagonizariam a maior movimentação de tropas e armamento bélico em África, desde a Segunda Guerra Mundial, 10 anos depois do fracassado da “Operação Savannah”. Já com 27 anos e ombreando a patente de major, acumulava passagens por várias frentes de combate.
Ali, Nando actuava como comandante-adjunto do Chefe do Estado-Maior da 6.ª Região Militar, então liderada pelo tenente-coronel Jorge Barros Nguto, o “General Ngueto”. Ao seu lado, nomes como Armindo Moreira (comissário político), Apolo de Sousa (chefe de Operações), António Jorge (líder da equipa de engenharia militar) e Augusto Agostinho (responsável por assegurar o normal funcionamento das Comunicações).
Eles formavam a engrenagem de comando daquela que viria a ser classificada como uma operação sem precedentes, que era acompanhada à distância pelo então Comandante-em-Chefe, José Eduardo dos Santos.
Segundo relatos presentes na obra “Cuíto Cuanavale: Guerra e Paz na África Austral”, resultante de uma Edição Especial do programa radiofónico África Magazine, dirigido pelo jornalista Amílcar Xavier, o agora tenente-general Nando atribui o sucesso da batalha de Cuíto Cuanavale aos bravos comandantes das brigadas na linha da frente, classificando-os: verdadeiros heróis do Cuíto Cuanavale, entre eles António Valeriano, que comandava a 25.ª brigada e travou as tropas inimigas no Triângulo do Tumpo.
Os dias em Cuíto Cuanavale foram de dor e resistência. Soldados que vinham de outras campanhas, como a “Operação 2.º Congresso”, já não viam a mulher e os filhos há anos. O reencontro com as famílias era uma questão de sorte. Cartas (transportadas pelo correio militar) e memórias serviam de consolo para corações endurecidos pela guerra. Muitas vidas foram ceifadas dos dois lados, em pouco tempo. O então major Nando perdeu camaradas próximos.
Entre eles, Zongo, um exímio chefe de brigada de artilharia, com quem trabalhou durante muito tempo no Lubango e foram destacados juntos no Cuíto Cuanavale. “Num golpe da artilharia, o meu camarada morreu”, recorda. Mesmo em meio à incerteza, a sua esposa tomou uma decisão corajosa: mudou-se para Menongue, levando os três filhos menores, para estar mais próxima dele. Ainda assim, os encontros eram escassos, pois ocorriam apenas a cada três meses, quando a guerra permitia.
A 23 de Março de 1988, o confronto cessou. A batalha de Cuíto Cuanavale ficou para a história como o ponto de viragem militar que levou à independência da Namíbia e abriu caminho para o fim do apartheid. A guerra nas trincheiras deu lugar a outra, diplomática, e Angola também prestou um contributo relevante. E foi ela que, dois anos depois, permitiu que Mandela saísse finalmente da prisão de Robert Island, em 11 de Fevereiro de 1990.
Três meses depois, a 19 de Maio, Madiba veio a Angola agradecer pelo apoio e sacrifícios consentidos pelos bravos rapazes, com o apoio, é claro, das forças cubanas. Ironicamente, os destinos Mandela e Nando cruzavam-se sem que um soubesse do outro. Enquanto um saía da cela, o outro saía da linha da frente. Um, para libertar uma Nação; o outro, por contribuir para isso.
A História, essa senhora exigente, reserva os louros, por norma, aos nomes que ocupam o topo da hierarquia. Neste caso, ao então Presidente José Eduardo dos Santos, que honrou o compromisso pan-africanista assumido por Agostinho Neto: “No Zimbabwe, na Namíbia e na África do Sul está a continuação da nossa luta”.
Mas é justo recordar que, por detrás da diplomacia e dos discursos, estavam homens como Nando, que trocaram o lar pela guerra e a juventude pela Pátria. Que enfrentaram o apartheid não com palavras, mas com acções.
Por isso, no nosso entender, hoje, ao evocarmos Mandela, que nunca esteve sozinho na sua luta, também devemos lembrar aqueles que o ajudaram a caminhar livre. E entre eles, está o major que se tornou tenente-general Nando que, certamente, carrega um dos nomes que jamais serão apagados da história militar da África Austral.
Jornalista