A morte do embaixador António Brito Domingos Sozinho (ou simplesmente Brito Kissonde, como era conhecido nas lides militares) leva-nos, mais uma vez, à reflexão sobre o preço real da liberdade.
Faleceu em Lisboa, longe do solo pátrio, aos 84 anos, vítima de doença. Ficamos com a ideia de que partiu discretamente, como quem sabe que já dissera tudo com a vida que levou. Guerrilheiro, músico, diplomata e empresário: uma biografia múltipla com Angola sempre no centro.
Ao querermos revisitar o seu percurso, a mente atraiçoa-nos suavemente, conduzindo-nos a outra história, igualmente pungente, embora mais breve: a de José Mendes de Carvalho, conhecido pelo nome de guerra comandante Hoji Ya Henda. Um nome que, para muitos, talvez soe apenas a um dos bairros mais comerciais de Luanda, a uma avenida ou a uma data em Abril.
Mas para quem sabe ouvir os sussurros da História, Hoji Ya Henda é, com certeza, símbolo da juventude sacrificada em nome da Pátria. Como escreveu Nelson Mandela: “Há momentos em que uma Nação é forçada a escolher entre a submissão e a luta. Nós escolhemos a luta.” E Hoji Ya Henda escolheu. Sem hesitações. A nossa viagem de hoje recua ao ano de 1963.
O cenário, sombrio, resulta de acções maléficas orquestradas num prédio na baixa luandense, próximo ao Largo do Carmo. Ali funcionava a sede da temida PIDE (a Polícia Internacional e de Defesa do Estado).
Era labirinto de horrores, prisão do pensamento e câmara de tortura para todos os que ousassem lutar por um país livre. Foi ali que se abriu o processo n.º 2732 que, mais do que um número, era uma sentença à espera de execução. O visado? Um jovem de 22 anos. Um rosto sem rugas, mas já marcado pelas angústias de um tempo sem clemência.
Um filho do Cuanza-Norte, nascido em 1941, na então Vila Salazar (hoje Ndalatando). Filho primogénito do enfermeiro auxiliar Agostinho Domingos de Carvalho e da professora Florinda de Carvalho.
Dois ofícios nobres que davam à sua família prestígio e respeito comunitário. Criado sob os ensinamentos da Igreja Metodista, cresceu num ambiente onde fé e política caminhavam de mãos dadas.
A consciência nacional começou ali, entre hinos e lições bíblicas. Aos 14 anos, foi enviado para Luanda para prosseguir os estudos no colégio Casa das Beiras e no prestigiado Liceu Salvador Correia. Mas foi também nesse ambiente estudantil, efervescente e secreto, que se acendeu o fogo revolucionário.
Com apenas 20 anos, em 1961, partiu com dois antigos colegas de liceu e companheiros de luta (Elísio de Figueiredo “Duque” e Ismael Martins) rumo ao exílio no antigo Congo-Léopoldville (actual República Democrática do Congo).
A motivação de partir se agudizou depois que o seu tio, Agostinho Mendes de Carvalho, foi preso e deportado para Cabo Verde (onde veio a permanecer até 1974). Hoji Ya Henda não podia ficar para trás.
Decidiu seguir um caminho perigoso, mas que se impunha como sendo necessário, de modo a continuar a luta por meio de acções concertadas do lado de lá da fronteira.
Era o início de uma outra forma de vida — a vida em luta. A fuga, por caminhos clandestinos, foi uma verdadeira odisseia. Como quase todas as fugas da época, foi feita à custa de coragem, sorte e fé.
Atravessaram Quimbango, Maquela do Zombo, matas e trilhos sem nome. Chegaram ao Congo e, devido à forma como tudo ocorreu, as autoridades coloniais só se aperceberam da ausência do jovem deste território três anos depois.
Apesar do apoio que muitos dos nacionalistas recebiam de responsáveis das Igrejas Metodista e Católica, a fuga era sempre de elevado risco de vida. Muitos acabaram por ser apanhados e presos pela PIDE.
Outros há que nem essa possibilidade tiveram. Foram atingidos mortalmente por disparos efectuados por efectivos do exército colonial português. Há ainda alguns que eram deixados feridos, por impossibiliade de prosseguirem.
Em Outubro do mesmo ano, o jovem revolucionário integrou um grupo de 21 guerrilheiros que partiu do Congo com destino a Nambuangongo, no Bengo, com o propósito de se juntar aos companheiros que se encontravam na primeira região político-militar do MPLA. Mas a missão falhou. Caíram numa emboscada e alguns foram dizimados.
Os sobreviventes recuaram, feridos, mas não vencidos, ao encontro da delegação do seu partido, em Léolpoldville. Entre eles estava Hoji Ya Henda que, aos 20 anos de idade, passou, assim, a ser admirado, respeitado e acarinhado pelos seus correligionários pela sua coragem e visão.
Com apenas 21 anos, liderou o envio de jovens para treino militar no Gana. E, em 1962, coube-lhe a honra de dirigir, em El-Kasbatadla, em Marrocos, o acto oficial de juramento das primeiras unidades organizadas de guerrilha do MPLA formadas no exterior, na presença de Mário Pinto de Andrade e Agostinho Neto, estes dois últimos ocupando as funções de Presidente e de Presidente de Honra deste movimento.
Aquando da extinção do Exército Popular de Libertação de Angola (EPLA), na altura dirigido pelo nacionalista e escritor Manuel dos Santos Lima, a escolha recaiu sobre Hoji Ya Henda para assumir o posto de comandante-geral do Destacamento de Guerrilheiros do MPLA.
Sob a sua liderança, reorganizouse a estrutura militar e os ataques tornaram-se mais eficazes. Deste modo, o nome do MPLA começou a ecoar com mais força, tanto dentro quanto fora do país.
Assim, a sua inteligência militar e a sua bravura em combate tornaram-no símbolo e inspiração. No entanto, como tantas vezes acontece com os que se entregam de corpo à liberdade, o fim chegou cedo.
O calendário assinalava ser 14 de Abril de 1968, quando, nas matas de Karipande, no Moxico, Hoji Ya Henda tombou em combate, aos 26 anos de idade. Morreu antes de a bandeira da independência subir ao céu.
Mas não morreu em vão. A pátria que ele não viu nascer livre carrega no nome dele uma dívida de gratidão que jamais poderá ser paga.Num tempo em que a liberdade parece garantida e o patriotismo às vezes se esvazia de sentido, recordar estes nomes é cumprir um dever: o de não esquecer que cada direito conquistado foi, primeiro, um risco assumido por alguém.
Hoje, lembramos Hoji Ya Henda não apenas como mártir, mas como farol, e dos feitos do embaixador Brito Sozinho, que partiu nesta era de paz, com elevado simbolismo.
É momento de lembrarmos o valor do sacrifício e da entrega da juventude que se fez pátria. Porque a liberdade não é um presente perpétuo: é uma construção contínua.
Devemos continuar a escrever, a contar e a dizer os nomes destes filhos honrosos de Angola porque o esquecimento também é uma forma de morte. E eles já morreram uma vez.
Não os devemos deixar morrer de novo. Para quem deseja conhecer melhor a sua história, recomendamos a leitura do livro do general Julião Mateus Paulo, “Dino Matrosse”, intitulado: A PIDE na Rota de José Mendes de Carvalho “Hoji ya Henda”.
*Jornalista