A liberdade, depois da vida, é talvez um dos bens mais preciosos que o ser humano possui. Não é por acaso que é justamente esse direito que se perde quando alguém comete uma infração grave — seja ela de foro criminal ou civil.
Aliás, no campo civil, a restituição do bem subtraído passou a ser uma condição sine qua non para se alterar a medida de coação. Contudo, quando se aplicam medidas de coação mais gravosas — como o termo de identidade e residência, a prisão preventiva ou a prisão efectiva —, elas incidem directamente sobre esse bem maior: a liberdade.
Para compreender plenamente o valor da liberdade — essa que muitos ainda colocam em risco por ganhos materiais para exibir um “status” indevidamente ou pelo prazer momentâneo de causar sofrimento a outrem —, é preciso recuar estrategicamente ao período da luta de libertação nacional.
O cenário escolhido para esse recuo é Nambuangongo, território que foi a 1.ª Região Político-Militar do MPLA. De lá, embarcamos numa viagem histórica que pode estender-se até à enigmática e cosmopolita cidade de Kinshasa, na vizinha República Democrática do Congo (RDC).
A época? A década de 1960, culminando no momento em que, a 11 de Novembro de 1975, os angolanos conquistaram o direito de serem considerados um povo livre — livres do colonialismo e donos do seu próprio destino. Mas o caminho até à histórica noite da independência foi penoso.
Um sofrimento que nós — pais de filhos que hoje crescem num país livre — mal conseguimos imaginar. Nos recusamos sequer a pensar o que seria ver os seus filhos, adolescentes de 13 anos, obrigados a erguer com as próprias mãos uma casa de pau-a-pique nas matas de Nambuangongo, enfrentando o frio cortante das noites de cacimbo ou a chuva, os animais selvagens e o medo constante da guerra. Para o efeito, contou com o apoio da sua mãe.
Num tempo em que a chuva podia ser bênção para a lavoura, mas também maldição: penetrava pelos tetos de capim mal cobertos, encharcava os pisos de terra batida e forçava famílias inteiras a passarem as noites em pé, sem dormir, se encolhendo num espaço minúsculo para evitar o contacto com a água.
Foi nesse ambiente hostil que muitas famílias viveram como autênticos nómadas durante a guerra de guerrilha contra o colonialismo, atravessando as florestas densas da província do Bengo, isto é, de Nambuangongo e dos Dembos.
Entre essas famílias estava a de um adolescente de 13 anos, que teve de construir uma casota para abrigar a mãe, duas irmãs menores, uma sobrinha de sete anos e uma prima.
Fugiam dos bombardeamentos da Força Aérea Portuguesa, que, numa madrugada por volta das 5h30, destruíra o seu quilombo — com o objectivo de ceifar a vida dos guerrilheiros que faziam parte desta comunidade.
Entre eles estava o pai do menino, que, junto com os outros chefes de família, tentava travar o avanço por terra do exército inimigo, distante da zona residencial. O “adolescente construtor” nunca esqueceu os gritos, a imagem das pessoas desesperadas e dos corpos caídos no chão da floresta, alguns já sem vida. Os feridos clamando por socorro — muitos dos quais não puderam ser ajudados — ainda se encontram escondidos na sua memória de meninice.
A decisão de se refugiar nas matas de Nambuangongo foi motivada pela escolha do pai, que, em Julho de 1961, decidiu juntar-se à luta armada, levando consigo toda a família. A forte ligação da população local à Igreja Metodista Unida — da qual o reverendo Pedro Agostinho Neto, pai do futuro Presidente Agostinho Neto, fora um nome de referência — contribuiu para a adesão ao MPLA.
Pois, o nome de Agostinho Neto já era amplamente conhecido e respeitado entre os líderes comunitários e religiosos, apesar de não o conhecerem pessoalmente. Facto que atraiu muitos jovens e adultos daquela região a Brazzaville, onde o MPLA estava sediado, para se alistarem na luta.
Carregavam consigo a esperança de dias melhores e a tristeza de deixar a família, sem certeza de que voltariam a reencontrá-la completa. Porém, a travessia da floresta de Nambuangongo até à fronteira com a RDC era uma verdadeira odisseia, repleta de riscos, emboscadas e ataques, tanto do exército português quanto de guerrilheiros da UPA/FNLA.
Oito dos seus companheiros de caravana perderam a vida, dos quais cinco foram baleados mortalmente e três afogaramse no momento em que faziam a travessia do rio Mbridge.
Houve uma situação em que tiveram de abandonar um amigo, ferido por balas, à mercê da selva. Mas aquele jovem, que começara como um “construtor de casota”, sobreviveu.
Em Kinshasa, deu sequência aos estudos e, com muito sacrifício, formou-se em jornalismo, enquanto trabalhava como segurança, primeiro de uma oficina e mais tarde de uma residência.
De regresso a Angola, formouse em Direito e tornou-se político, escritor e diplomata de carreira. Foi jornalista da RNA, vice-ministro e ministro das Relações Exteriores, bem como governador do Bengo.
Hoje responde pelo nome de João Bernardo de Miranda (o homem na foto, tirada nos tempos de estudante em Kinshasa). A sua história é contada com detalhes na autobiografia “Percurso de um Combatente: feitos e testemunhos principais”.
Trata-se de um testemunho vivo do sacrifício que marcou o caminho da nossa liberdade. Hoje, em 2025, quando Angola se prepara para assinalar 50 anos de Independência Nacional, é essencial lembrar que a liberdade que temos — consagrada na Constituição como princípio fundamental — foi conquistada com sofrimento.
Não se trata apenas da liberdade de expressão, religião, associação ou circulação. É a liberdade de existir com dignidade. E com ela vem um dever patriótico: trabalhar para o desenvolvimento deste país que se chama Angola.
*Jornalista