O meu ano de estreia na Universidade foi deveras memorável, isto devido a uma macedônia de factores, mais particularmente pelo meu então Professor de Introdução ao Estudo do Direito, Dr. Domingos Henriques, o qual possuía um sotaque bastante distinto e inconfundível.
Há sempre um momento eventual de descontracção durante as aulas, e nestes, falta tudo menos um aluno curioso que queira sondar informações sobre a vida pessoal do Professor.
Foi durante estes breves momentos de confissão que soube que ele era ovimbundu, não me lembro de onde exactamente. Sabê-lo-ia caso tivesse a mesma familiaridade e capacidade que a minha avó Albertina de desvendar, somente através do sotaque, de qual província pertencente à nação ovimbundu alguém é.
Por agora, ainda me soa tudo igual. O Dr. Henriques era já um senhor quinquagenário, tendo fixado residência na capital há anos, passando, inclusive, uma considerável parte da sua vida na Europa em formação.
Contudo, continuava refém do seu acentuado sotaque ovimbundu. Esta coisa dos sotaques parece ser séria mesmo. Sou apreciador da comédia de stand-up feita pelo sul-africano Trevor Noah e, em um dos seus shows, ele partilha com o público a chamada de atenção que recebeu dos seus compatriotas para que tivesse cuidado para não perder o seu sotaque.
Esta advertência deriva de um genuíno sentimento de decepção causado por Charlize Theron, aclamada actriz de Hollywood e compatriota do comediante, a qual, talvez por residir nos Estados Unidos por muitos anos, terá perdido o seu sotaque.
Trevor Noah caiu nas graças de Hollywood. Amigo de Steve Jobs e Oprah Winfrey, já atingiu feitos verdadeiramente marcantes como apresentar os Grammys por três vezes consecutivas e o jantar de correspondência da Casa Branca, na presença do Presidente Joe Biden, tudo isto com o seu sotaque sul-africano.
Trata-se sem sombra de dúvidas de um orgulho para África. Contudo, talvez por causa de tudo isto, acometidos por um receio de que a história se repita, os sul-africanos emitem um ultimato ao comediante: não percas o teu sotaque, Trevor, não cometas o mesmo erro que a Charlize.
Acho que o que eles realmente querem dizer é: não nos decepciones tu também. Luanda é, infelizmente, implacável neste sentido. Luanda não celebra sotaques, pelo contrário, os elimina.
Prova viva é o meu amigo Sabino Sequeta. Sabino deixou a província do Huambo aos onze anos de idade, mudou-se para Luanda. Quando chegou a capital, falava umbundu fluentemente.
Hoje, com vinte e poucos anos, já só entende. Esta tragédia foi causada por uma implacável onda de insultos repletos de preconceitos a respeito das suas origens.
É que, em Luanda, caso tenhas um sotaque que denuncia que não és local, corres o risco de ser chamado nomes como: “do mato”, “atrasado” ou “matumbo”; epítetos descabidos usados com um único propósito: dizer que se não fores de Luanda ou como os de Luanda, és inferior.
Movido por um sentimento de vergonha, o meu amigo acabou por, gradualmente, despir-se de si mesmo e distanciar-se ao máximo do seu antigo eu.
Tragédia! O ovimbundu não só mudou o seu sotaque como não mais fala Umbundu. Isto em troca de aceitação e “civilização”. O sotaque ovimbundu denuncia-te logo.
Faz-me pensar no quão profundamente o preconceito que o meu amigo sofreu o deve ter impactado, pois, só em presença de um episódio verdadeiramente traumático se poderia extinguir um sotaque tão forte. A minha avó Albertina veio a Luanda na década de setenta e o seu sotaque não se lhe desgarra.
Penso que eu e os sul-africanos nos preocupemos com sotaques devido ao facto de que, por um lado, eles nos fazem sentir representados, e, por outro, fazem-nos recordar de casa.
Toda a minha família é cem por cento do planalto central, porém, infelizmente não falo umbundu nem tenho sotaque. Quem dera tivesse ambos.
Por: EDUARDO PAPELO