Toda sala tem um. Às vezes dois, às vezes três, mas tem. O aluno do fundo. Ele não levanta a mão, não responde à professora, não participa das discussões sobre “a importância do sujeito oculto na construção textual”, mas sabe, com riqueza de detalhes, quem engravidou quem no bairro, quem foi preso ontem.
Sentado na última carteira — trono sagrado dos desajustados e renitentes— esse aluno é um verdadeiro filósofo urbano. Não lê Platão, mas entende a República… a do bairro, onde todo mundo tem um segredo, e ele é o guardião de todos. Na aula de História, a professora fala da colonização.
Ele boceja. Mas se perguntares sobre os pânicos e os diculo entre vizinhos da rua dele, ele faz uma linha do tempo mais precisa que livro didáctico. Com datas, nomes e até apelidos. “Foi em 2006 que tia Lurdes deu com a panela no Zé da carapinha. Até hoje ele anda com cicatriz.”
Fala pouco, mas escuta tudo. Uma antena parabólica humana. Aparentemente distraído, mas com radar ligado até ao pensamento do professor.
É aquele que, mesmo sem nunca abrir o livro, sabe exatamente quando a professora vai pedir trabalho. Ele não estuda, mas tem um dom: previsão pedagógica. Um vidente escolar. Pergunta-se: “Por que ele nunca responde nada?” Fácil.
Ele sabe que, na escola, conhecimento é cobrado com juros. E ele prefere investir sua sabedoria onde rende mais: nas conversas de intervalo, nos bastidores da turma, nas confissões dos colegas.
É um banco de dados emocional da escola. E nem precisa de internet. Durante a aula de Matemática, a professora pergunta: — João, quanto é sete vezes oito? Silêncio.
Mas se alguém pergunta: — João, é verdade que o professor de matemática namora a colega dos cabelos cacheados? Resposta imediata, com análise crítica, conclusão e bibliografia oral: — É verdade, sim! Ela não é inteligente o suficiente para tirar as notas que tira, ela trabalha com a flor de Lácio. Eu vi! Este aluno é um mestre da invisibilidade escolar.
Não atrapalha, não responde, mas está sempre ali. E quando é chamado ao quadro, caminha como quem vai à forca. Segura o giz como se fosse dinamite prestes a explodir e escreve com a lentidão de quem espera um milagre. E se erra — o que geralmente acontece — solta um sorriso tímido e filosofa: — Professora, a vida é feita de tentativas… No fundo (do fundo mesmo), este aluno é muito mais do que parece. Ele não está alheio — está além. Observa tudo com olhos de quem já entendeu que a escola ensina muitas fórmulas, mas pouca vida.
Que o quadro mostra regras, mas não ensina a sobreviver quando falta água em casa ou quando o pão aumenta de preço. Ele sabe que ser aluno em Angola, às vezes, é um luxo.
Então, sobrevive do seu jeito: rindo quando a professora briga, escondendo o caderno para não copiar matéria, e criando teorias sociológicas sobre o comportamento da turma.
No fim do ano, pode até ficar de recuperação. Mas sai com a cabeça cheia de histórias, de nomes, de experiências que não estão no currículo.
E talvez, um dia, quando se tornar o cota do bairro, vai sentar com os mais novos e contar como sobreviveu ao sistema sem nunca ter respondido uma pergunta da professora — mas sabendo exatamente onde estava o conhecimento mais importante: nas entrelinhas da vida.
Por: André Curigiquila